Vai pelas hostes socialistas algum alvoroço sobre “problemas de comunicação”, “tiros no pé”, “falta de propostas”, “desilusão”. Ao cabo dos seus primeiros 100 dias, António Costa não transformou o partido aos olhos dos portugueses, como mostram as sondagens, e ele próprio esteve muito longe de se transfigurar no “salvador” que tantas expectativas criou ao ser eleito já lá vão cinco meses.
Porém, se olharmos com alguma frieza para o que podia António Costa ter feito para hoje a situação ser radicalmente diferente, chegamos a uma conclusão simples: é muito mais difícil ser líder do PS do que parece, porque é muito difícil ser líder de qualquer partido socialista na Europa de 2015. António José Seguro tinha alguma razão quando insistia, à beira do desespero, que o sofrível resultado eleitoral do PS nas Europeias do Verão passado era, mesmo assim, o segundo melhor resultado de um partido socialista nessas eleições, só superado pelo dos camaradas italianos, esses beneficiando nessa altura de ventos especialmente favoráveis.
Costa, que anda nisto há muitos e muitos anos, tem consciência desta situação. E é por isso que vai fazendo de mula, evitando falar e comprometer-se, pois sabe que quem anda à chuva molha-se. E para aqueles lados está a chover imenso.
1. Onde está o PS? No centro-esquerda ou cada vez mais próximo da esquerda radical?
O primeiro problema de Costa é saber onde situar o seu PS: no centro-esquerda, onde sempre esteve e onde obteve os seus melhores resultados eleitorais, ou mais à esquerda, para cobrir um flanco que, como se vê por essa Europa fora, mas é sobretudo evidente em Espanha e na Grécia, pode estar vulnerável?
Costa, como político pragmático, tem por certo consciência que o PS português só não se encontra numa situação parecida às do PASOK ou do PSOE porque teve a sorte de não ter de ser ele a aplicar o memorando da troika (agora chamada “as instituições”). É certo que o assinou e até foi o principal responsável, de longe, pelos seus termos e pelas suas metas, mas beneficiou do conforto de a partir daí estar na oposição e ser apenas treinador de bancada. Mais: mesmo que a “troika” não tivesse chegado na altura em que chegou, por via de um PEC IV, ou PEC V, ou PEC VI, o PS teria tido de apertar a tarracha como o fizeram os socialistas espanhóis, mesmo sem a presença dos inspectores das “instituições”. Ou seja, teria tido um desgaste que não teve.
Quem quer tenha este realismo sabe, tem de saber, que não pode fazer grandes promessas. Não se trata de não ter ainda elementos ou estudos para poder concretizar essas promessas, é pura e simplesmente não as poder fazer. Pela razão simples de que o nosso futuro, tal como o dinheiro de que vamos dispor, deixou de estar nas nossas mãos ou de depender da nossa vontade. Foi isso mesmo que o próprio António Costa reconheceu esta semana no Lisbon Summit promovido pela Economist: “Numa União a 28 não é possível prometer um resultado que depende de negociações com várias instituições, múltiplos governos, de orientações diversas. Como se tem visto nas últimas semanas, é um erro definir uma estratégia nacional que ignore a incerteza negocial e se bloqueie numa e única solução.”
2. Uma dor de cabeça chamada Syriza. Ou Podemos.
Penso que Costa não podia ser mais claro: o futuro não está nas suas mãos, não se espere muito do seu programa de governo, contentem-se lá com “uma visão para uma década” e não peçam muito mais.
É possível que, aqui há uns meses, ele ainda julgasse que podia um dia ser concreto, é possível que ao adiar a apresentação do programa para Junho ainda pensasse poder contar com uma definição mais a seu gosto das políticas europeias. Mas com o Syriza o céu caiu-lhe, literalmente, em cima da cabeça. A emergência foi tal que foi a correr dar uma entrevista ao Público quase só sobre a crise grega, porventura para deitar alguma água fria em algumas moleirinhas esquentadas da sua própria direcção política.
As primeiras quatro semanas de Syriza foram suficientes para que caíssem por terra alguns dos argumentos mais vezes repetidos pelo PS, em especial pelo PS de Costa. O primeiro desses argumentos é que tudo seria diferente se, em Portugal, estivesse um governo que levantasse a voz à Europa. O Syriza experimentou esse caminho e acabou por capitular, tendo tido apenas ganhos de causa semânticos. O segundo é que haveria espaço para uma grande renegociação das dívidas, talvez mesmo uma conferência europeia, mas tal ideia morreu quando o presidente do Eurogrupo, por sinal um socialista, disse em Atenas que essa conferência até já existe e chama-se… Eurogrupo.
Mas as dores de cabeça criadas pelo desenvolvimento da crise grega não se ficaram por aqui. Estão já marcados dois novos embates entre o Eurogrupo e a Grécia, ambos de desfecho altamente incerto, um para os finais de Abril, outro, porventura o decisivo, para finais de Junho. Como o que o PS pode ou não escrever no seu programa eleitoral depende muito de como acabarem essas duas rondas negociais com Atenas, a tinta ameaça secar nas canetas socialistas ainda antes de estas terem chegado a alinhar algumas ideias mais concretas no papel.
3. A esquerda socialista europeia está sem programa
Estes dilemas socialistas têm um pano de fundo: a esquerda socialista está sem programa e sem foco em toda a Europa. A seguir à queda do Muro de Berlim os socialistas ainda tentaram uma “terceira via”, um socialismo com ingredientes daquilo a que acintosamente chamam neoliberalismo, e políticos como Guterres, Blair e Schroeder até conseguiram alguns sucessos eleitorais seguindo essa via, mesmo quando muitos grunhiam nas bases dos seus partidos. Não nos esqueçamos, por exemplo, que o primeiro-ministro que mais privatizou em Portugal foi Guterres e que o político que mais mudou as leis laborais na Alemanha foi Schroeder. Mas, para sua desgraça, esse equilibrismo só foi possível enquanto houve dinheiro e, sobretudo, enquanto se viveu na ilusão de que estávamos num tempo em que o capitalismo superara as suas crises cíclicas e se podia beneficiar da bonança de longos períodos de crescimento económico.
O dilema actual da generalidade dos partidos socialistas dos países desenvolvidos da Europa Ocidental é que, cada um à sua maneira, estão a ser vítimas do seu próprio sucesso, isto é, da concretização do modelo de sociedade que sempre defenderam: economia de mercado com Estado Social. E estão a lidar mal com os dilemas que as necessidades de reforma desse mesmo Estado Social coloca. Enquanto foi possível ir aumentando os impostos, foi possível pagar as promessas que se iam fazendo, mas isso começou a acabar ainda na década de 1970 nos países nórdicos e em Inglaterra. Mais tarde acreditou-se que o dinheiro barato poderia substituir os impostos que faltavam, e muitos começaram a endividar-se, mas tal levou depressa a descalabros como o grego e o português.
Agora a única esperança de muitos socialistas, sobretudo nos países do sul da Europa, é que sejam outros – os países do Norte – a pagar as suas despesas, em nome da “solidariedade”. É isso que está por detrás de muitas propostas que o PS tem acarinhado, da mutualização da dívida à possibilidade, por exemplo, de políticas sociais europeias. Acontece que os eleitorados a quem se pede essas transferências sabem que também eles precisam do seu dinheiro para pagar um Estado Social que, mesmo sem lhe acrescentar novas valências, todos os anos consome mais dinheiro e mais dinheiro. E servem de muito pouco os choradinhos, sobretudo quando, como sucede com os gregos, as transferências de fundos da União para Atenas são superiores a tudo o que, neste momento, Atenas paga de juros da sua gigantesca dívida.
É por isto que o PS e António Costa não têm conseguido sair de generalidades sobre a aposta na educação, na inovação ou no aumento da competitividade: é que não sabem como poderão pagar as suas promessas porque já nem sabem como conseguirão pagar uma Segurança Social que todos os anos exige mais recursos ou uma Saúde cada vez mais cara porque há novos medicamentos, novos tratamentos e mais exigência ao mesmo tempo que temos uma população cada vez mais envelhecida.
Durante muitas décadas os socialistas europeus estiveram protegidos de grandes dissidências à esquerda pela presença de partidos comunistas cuja ligação à URSS limitava as possibilidades do seu crescimento eleitoral. Mas agora, quando surgem os Syrizas e os Podemos a fazerem o tipo de discurso que uma boa parte da base eleitoral dos socialistas sempre gostou de ouvir, todos os Costas desta velha Europa se sentem acossados.
4. A sombra do preso nº 44
No caso do nosso Costa, como se todas estes problemas não fossem suficientes num tempo em que os eleitorados se tornaram mais exigentes, e pedem aos candidatos para fazerem contas, ainda tem de viver com mais duas sombras que são também duas imprevisibilidades.
A primeira é a tímida recuperação económico que estamos a viver prosseguir, tornando menos pesada a carga que o governo carrega aos ombros. E mais fácil o seu discurso.
A segunda é a de Sócrates, uma sombra que para mais ameaça crescer nos próximos meses e cair sobre a campanha eleitoral. Costa deve estar a antecipar a tempestade, senão não teria gerido de forma tão cínica e tão calculista a sua única deslocação a Évora, a sua rápida visita ao preso nº 44.
A história tem pois destas ironias: o homem que calculou todos os timings para só ocupar o palco no timing certo e ter pela frente uma autoestrada que o levaria ao poder, é o mesmo homem que não consegue controlar qualquer timing, que não consegue sequer saber o que deve pensar e defender. Não gostava de lhe estar na pele, sobretudo depois das expectativas que suscitou.
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