Mais de quatro mil pessoas já morreram no recente surto de ébola. Não se sabe quantas mais morrerão. Alguém fez uma vigília por eles?
Em países como a Serra Leoa a vida quotidiana, já de si difícil, está em estado de emergência. Na Guiné Conackry, um dos países onde o ébola mais se tem propagado perante a debilidade das estruturas sanitárias (Ó senhores, onde estão agora aqueles que nos anos 60 do século passado apregoavam o imenso progresso que iria ter lugar numa África livre da presença colonial?), não só morrem as vítimas da doença como aqueles que a tentam combater podem acabar assassinados: em Womey, na Guiné, a população matou os membros de uma equipa que ali se deslocara para os alertar sobre a doença. Onde está a solidariedade do mundo?
O combate ao ébola está a levantar questões éticas decorrentes das proibições de deslocação para populações inteiras ou da necessidade de recorrer a tratamentos experimentais sem que se cumpram os procedimentos habituais. Quantos textos de reflexão já se leram sobre estas situações?
Digamos que já não seria mau se estes humanos tivessem conseguido provocar uma onda de simpatia similar à gerada pela cadela de Teresa Romero, a auxiliar de enfermagem espanhola contaminada com ébola. Excalibur, assim se chamava a cadela, foi abatida por ordem das autoridades sanitárias, pois poderia ter contraído ébola. No passado sábado foram convocadas manifestações em 24 localidades de Espanha para mostrar indignação pelo destino de Excalibur. A operação de retirada da cadela da casa onde se encontrava transformou-se num circo, com os manifestantes tentando por vários meios que o animal não fosse levado.
A dado momento quem lesse a imprensa espanhola era confrontado com uma situação paradoxal: sindicalistas, técnicos de saúde, ministros, jornalistas, amigos e familiares dos humanos em quarentena trocavam dúvidas e acusações sobre os riscos corridos por aqueles que cuidam e convivem com os afectados por ébola. Era o protocolo de segurança que não foi cumprido, o fato de protecção que tem as mangas curtas, a falta de informação sobre os momentos de maior risco para os profissionais de saúde, os hospitais que não foram concebidos para receber doentes com ébola… Enfim, tudo eram factores e situações de risco para os humanos que tratam dos humanos. Simultaneamente milhares de pessoas nas redes sociais e algumas nas ruas subestimavam os riscos de se manter Excalibur em casa ou num laboratório. Aparentemente não havia riscos nem para os humanos que tratassem de Excalibur, nem para os animais que se cruzassem com ela.
Não sei se seria indispensável abater a cadela. Sei que se sabe pouco sobre o ébola e menos ainda sobre o ébola nos cães. Estes poderão eventualmente ser portadores da doença e transmiti-la mesmo não apresentando quaisquer sintomas. E assim sendo o destino de Excalibur, por muito impopular que seja escrevê-lo, só poderia ser o abate ou o confiamento num laboratório. Mas para tal era necessário que as autoridades espanholas considerassem ter condições para a manter em condições de isolamento e segurança. O que não foi o caso. E assim chegamos ao abate de Excalibur transformado, mediaticamente falando, no sacrifício de Excalibur.
A relação que mantemos com os animais, e sobretudo a relação que o mundo mediático mantém com os animais, é cada vez mais de sofá. Sofá no sentido urbano mas também psicanalítico do termo. Quem sai à rua com um cão ou com uma criança sabe bem que é muito mais fácil que aqueles com que nos cruzamos sorriam para o cão do que para a criança. Aliás recomendo a experiência de se levar uma criança a um pediatra e um cão ao veterinário: o rigor alimentar é muito superior para os cães do que para as crias humanas. E como não bastasse o disparate de uma mulher, uma vez mãe de uma criança, passar a ser chamada por mãe por funcionários de escolas e de consultórios médicos – o que é que se responde a uma senhora que nos interroga “A mãe está a perceber?” –, ainda temos de vivenciar a perturbante maluqueira de nos vermos ser tratadas como mães adoptivas de um cão ou de um gato (Os peixes e os pássaros, talvez por falta de pelo, ainda são bichos de que se cuida e que se têm mas que não se adoptam). Que é uma outra maneira de nos dizerem que entre o filho humano e o filho cão não haverá diferença. Para mim há.
Mas mais perturbante ainda que este uso do verbo adoptar, foi constatar como é diferente a reacção quando se compram medicamentos para humanos e para animais: há uns anos adquiri medicamentos que, pela sua natureza, indicavam que era muito precária a saúde da pessoa a que se destinavam. Nunca ninguém me desejou as melhoras ou deu um bom dia ou boa tarde com especial carinho. Pela mesma época, até porque como bem se sabe um problema, sobretudo se for muito grande, nunca vem só, o meu cão teve de ser operado. Cada ida à farmácia era uma festa: como está? Coitadinho! Tem melhorado?…
Como, felizmente para eles, os animais não falam, pelo menos com os humanos, estes últimos dão asas à sua imaginação e relativismos projectando nos animais uma versão da natureza algures entre o peluche, a Disney e as espiritualidades. Nessa militante visão do mundo em que em nome do amor aos animais tudo é possível – por exemplo: agredir cientistas e funcionários de laboratórios que usam animais como cobaias –, campeia a mais profunda ignorância sobre os animais eles mesmos.
É esse o mundo do “não existem cães agressivos mas sim donos agressivos” dos activistas, que acham estar a praticar uma boa acção ao soltarem animais que acabam naturalmente por morrer e afectar os ecossistemas envolventes onde foram alegadamente libertados, ou dos tabus em torno do controlo das pragas de gaivotas, ratazanas ou pombos. Sem que daí lhe advenha qualquer sobressalto eleitoral, um autarca pode levar um município à falência, roubar, escaqueirar o património, mas terá a sua reeleição em risco se se descobrir que autorizou a morte de pombos. Ou se de repente lhe cair em cima uma reportagem sobre abates no canil municipal.
É enorme a disponibilidade deste universo dos denominados amigos dos animais para acreditar nas mais inverosímeis histórias desde que protagonizadas por animais. Por mais estranho que possa parecer, no século XXI, uma senhora, de seu nome Mischa de Fonseca, conseguiu convencer milhares e milhares de europeus e norte-americanos de que ainda criança sobrevivera numa Europa mergulhada no nazismo, tendo por companhia uma alcateia. A imagem da criança belga maltratada pelos humanos e a quem apenas os lobos transmitiam algum calor e protecção foi mais poderosa que todas as explicações dos biólogos sobre a impossibilidade de tal ter acontecido quanto mais não fosse porque à época não existiam naquelas regiões alcateias como a descrita pela autora. Já o livro, entretanto traduzido em 18 línguas, ia em filme quando as declarações de familiares de Mischa de Fonseca deitaram por terra esta história. Como consolação diga-se em abono da senhora que esta, além de fortes prejuízos materiais à produtora do filme, não causou danos a mais ninguém.
Infelizmente o mesmo não se pode dizer de Taylor Mitchell, uma jovem cantora canadiana que achou por bem procurar inspiração no meio dos coiotes e que morreu após ser atacada por eles. Ou de Timothy Treadwell, que acreditava falar com os ursos e que maravilhou o mundo ao ser filmado no meio deles. Treadwell e a sua namorada, Amie Huguenard, acabaram mortos pelos ursos, pois naquela absurda presunção de Treadwell de que entre ele e os ursos não havia qualquer diferença acabou a não respeitar as mais elementares regras de segurança no contacto com aqueles animais. O problema, como é mais que óbvio, não está nos animais, que agiram de forma perfeitamente natural, mas sim nas fantasias que os humanos neles projectam.
Mais do que direitos dos animais, o que vivemos neste momento é uma personificação dos animais que leva a situações mais ou menos anedóticas como as decorrentes do projecto que esteve em análise numa comissão do parlamento espanhol que visava incluir na espécie humana os chimpanzés (o que no limite acabaria a transformar os chimpanzés também em sujeitos de deveres). Mas que também nos tem conduzido a paradoxos éticos como os vividos em Espanha a propósito de Teresa Romero e da sua cadela. Ou num âmbito mais lato numa UE em que ao mesmo tempo que saem directivas protegendo a vida animal no terceiro trimestre de gestação, se legisla em sentido contrário no que respeita à espécie humana ao alargarem-se os prazos legais para a realização de interrupções da gravidez.
Dirão que tenho uma visão antropocêntrica dos animais e dos seus direitos. Por acaso tenho. Mas sejamos honestos: o que são os direitos dos animais senão uma criação humana?