De repente, toda a gente começou, a propósito do Brexit e de Trump, a falar, muito assustada, de populismo. A palavra é normalmente usada num sentido vago, sem muitas explicações, para designar, depreendo, programas políticos que apelam a instintos supostamente errados e condenáveis dos seres humanos, instintos que criaturas esclarecidas não devem partilhar. Quer dizer: é usada para condenar e para dizer que não devemos ser assim. Exemplo disso são dois artigos que o Público recentemente publicou. Um, simpático e quase interminável, de Jorge Sampaio (o título, além de um pouco esquisito, também é longo: “A nova Europa dividida num contexto internacional de incertezas. E nós?”, do dia 14), e outro, mais breve, de Augusto Santos Silva (“Começando pelo princípio”, do dia 15).

Não me interessa aqui saber se Trump ou os ideólogos do Brexit são, nesta acepção muito geral, populistas. Não me custa nada aceitar que, sob certos aspectos, o sejam. O problema é que, entendido o populismo assim tão latamente, pouca coisa, se alguma, fica de fora dele. É que, em relação aos instintos errados ou certos, vale sempre a absoluta verdade do jagunço de Guimarães Rosa: “Pão ou pães é questão de opiniães”. E o conceito vê-se destituído de qualquer eficácia descritiva. É usado apenas como arma de arremesso e pouco mais.

Por sorte, um velho amigo fez-me conhecer um pequeno livro de um filósofo espanhol, José Luis Villacañas, publicado no ano passado e intitulado, justamente, Populismo. O livro é, em boa parte, uma tentativa de compreensão e uma crítica daquele que é talvez o principal livro de Ernesto Laclau, A razão populista. Laclau, para quem o não saiba, é um filósofo político argentino, morto há dois anos, que, vindo do peronismo, se tornou um personagem central em certa esquerda radical, teorizando, entre outras coisas, a Venezuela de Chávez como modelo de democracia. Além da amizade com Chávez, aconselhava muito, parece, Cristina Kirchner e amava, de um amor puro, a Cuba de Fidel. O Podemos de aqui ao lado, o Podemos de Pablo Iglesias, por exemplo, deve-lhe muito. E a sua obra é exactamente um elogio das virtudes do populismo de esquerda. Duvido que o Carisma de Sócrates, que não li, possa competir algum dia com o livro de Laclau em escopo e influência, quaisquer que sejam as ambições, provavelmente desmesuradas, porque nisso ele não falha, do autor. Sei que é mau para o nosso orgulho nacional, mas as coisas são o que são.

O que nos diz então Villacañas, lendo e criticando Laclau, sobre o populismo? Eis algumas ideias-chave, resumidas sem particular preocupação de sistematicidade e deixando muito por dizer.

O populismo, ao contrário da velha tradição marxista que os partidos comunistas ao seu modo particular herdaram, rejeita que as classes sociais sejam elementos importantes na construção de um programa político. Ele visa criar uma comunidade política que leve a democracia ao seu limite, que seja uma”verdadeira democracia”. Nessa “verdadeira democracia” é o povo, como totalidade, que importa.

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A linguagem é fundamental para o populismo, e fundamental sobretudo porque deve produzir afectos. Para isso, “o populismo dispõe de uma política comunicativa ultramoderna dirigida ao afecto, ao sentimento, à teatralidade e à espectularidade”. A comunidade afectiva deve criar um corpo social homogéneo. Tudo se joga neste plano de afectos e teatralidade. É neste plano que a hegemonia se constrói. Não que o populismo não precise de inimigos, internos e externos. Mas esses inimigos já não são concebidos à luz da velha teoria da “luta de classes”. A sua definição é tendencialmente circunstancial, táctica ou estratégica.

A batalha com as forças políticas tradicionais levada a cabo pelo populismo implica a transformação do conjunto variado e díspar de pedidos de satisfação (saúde, educação, etc.) que as sociedades liberais satisfazem melhor ou pior, eventualmente através de uma sua reorganização interna, numa reivindicação generalizada totalizadora. Sem essa transformação, o populismo não tem hipóteses de vencer, porque é apenas através dela que se torna possível a “construção hegemónica do povo”. Ela, a transformação de todos os pedidos de satisfação numa reivindicação totalizadora e una, exige a exploração da retórica e o apelo ao sentimento e ao afecto que referi antes.

Em particular, o afecto dirigido ao líder. É necessário um “líder carismático” que seja “objecto de amor”. Nele se encontram personificadas e unificadas todas as reivindicações. O líder tudo unifica simbolicamente e nele, só o amor sabe fazer isso, as coisas todas dão-se juntas. Como nota Villacañas, “a representação populista é pessoal e só por isso é hegemónica”. O povo existe pelo líder. O líder é “uma realidade parcial que é amada e que, enquanto o é, passa a significar uma totalidade”. É ele que garante a existência do povo e simboliza a sua actividade.

Haveria muito mais coisas a referir acerca do excelente pequeno livro de José Luis Villacañas, mas isto, por enquanto, deverá chegar. Para uma coisa chegará certamente. Admitindo que a descrição do populismo a que Villacañas procede é, pelo menos, parcialmente correcta, é legítimo perguntarmo-nos se os recentes artigos assustados com o populismo não falharão o seu objecto. É que uma pessoa não pensa aqui forçosamente em Donald Trump ou nos ideólogos do Brexit. Os pensamentos vão antes para outras paragens. O ministro Augusto Santos Silva deveria talvez olhar para a base de apoio parlamentar do seu Governo. E não, não estou a pensar em Jerónimo de Sousa.