1. Durante décadas, os portugueses desprezaram o Festival da Eurovisão sob dois pretextos: a) os arranjinhos “regionais” influenciavam a votação da coisa, pelo que era impossível ganhar; b) a coisa não passava de um desfile de futilidades primitivas, pelo que seria vergonhoso ganhar. De repente, uma vitória do representante português anulou ambos os constrangimentos – nas cabeças dos que festejaram tamanho avanço civilizacional. No mundo real, claro que a Eurovisão está para a música como o restaurante do Barbas está para a literatura ou o clã Mortágua para a economia. Mas bastou o reconhecimento desta nação valente para que, entre nós, aquilo adquirisse o prestígio de Bayreuth ou, vá lá, do Piquenicão, reviravolta que nada diz acerca do valor do festival e diz bastante acerca dos valores dos portugueses.

2. Não faço questão de comentar a cantiga e a interpretação vencedoras. Apenas noto que, por um lado, estão certamente a milhas das misérias derrotadas (das quais, por puro engenho, me livrei de aturar), e que, por outro, ficam um bocadinho aquém do Segundo Advento que muitos anunciaram. Aparentemente, talvez porque habitassem sob penedos ou “playlists” da TSF, os fanáticos de “Amar Pelos Dois” nunca tinham ouvido uma canção decente na vida e deixaram-se assombrar pela mera competência.

3. Sendo portuguesa, a vitória não se poderia limitar aos razoáveis méritos de um produto nitidamente superior aos restantes. Assim, procurou-se logo glorificar o rosto do produto: Salvador Sobral, daqui em diante o paradigma da modéstia, da inteligência, do patriotismo, do humanismo e, já agora, da originalidade.

4. Sobre a modéstia, destaque-se o instante em que, com uma taça horrenda nas mãos, Salvador Sobral desatou a rebaixar os demais participantes de uma competição em que entrou com nojo e, quiçá, sob ameaça de arma. De seguida, afirmaria que a proeza dele seria, cito de memória, assaz importante para a arte e para a cultura portuguesas. A última ocasião em que assistira a tamanha humildade foi quando o sujeito que me pintou a parede da sala comparou o resultado à “Ronda da Noite”.

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5. Sobre a inteligência, Salvador Sobral pareceu não perceber que, ao desacreditar a concorrência, desvalorizava, aliás com razão, a sua vitória.

6. Sobre o patriotismo, Salvador Sobral teve a coragem (?) de cantar em português, ousadia sem precedentes excepto por todos os vencedores de todos os festivais da RTP. Logo que se acabe de esconder os exemplares do disco que Salvador lançou há meses, cantado quase na íntegra em inglês, o rapaz arrisca-se a uma medalha do Instituto Internacional da Língua, a dois Prémios Pessoa e a uma resma de Prémios Camões.

7. Sobre o humanismo, este projectou-se para o mundo a partir da t-shirt de apoio aos refugiados que Salvador Sobral exibiu numa conferência. Não tenho dúvidas de que, no final, deixou o seu endereço de forma a alojar uns tantos.

8. Sobre a originalidade, recorde-se que, apesar da proficiência técnica, Salvador Sobral começou nos concursos de descoberta de talentos (têm-se descoberto imensos) e terminou (por enquanto) a concluir o impressionante trilho desbravado por Fernando Tordo, pelos Gemini e por Da Vinci. Além disso, e além de se inspirar em “standards” americanos e brasileiros dos anos 40 e 50, veste de preto e usa rabo-de-cavalo, façanhas praticamente inéditas na História da Terra.

9. Mas Salvador Sobral, músico com algumas virtudes, não é evidentemente o problema. O problema é o descaramento com que tantos se banham num sucesso que, discutível ou não, é inequivocamente dele. Na linha da frente, conforme é inevitável, surgiram os profissionais do ramo. O dr. Costa louvou a “expressão pessoal do sentimento”. E o prof. Marcelo jurou que “quando somos muito bons, somos os melhores dos melhores”. A primeira frase é o vazio, a segunda um embaraço. O facto é que, movidas pelo oportunismo ou pela maior das inocências, as ejaculações nacionalistas padecem de um princípio comum: a convicção de que festejar o êxito alheio nos dispensa de trabalhar em prol do próprio.

10. Sempre que não andam a comemorar a magnificência do país, os portugueses dedicam-se a insultar os descrentes incapazes de encontrar a dita no televoto da Eurovisão. Os descrentes, ou “velhos do Restelo”, são as pessoas amargas que criticam as coisas que, por decisão unilateral, as pessoas doces não acham criticáveis. Pior do que isso, só quando as pessoas amargas elogiam as coisas que, de novo sem avisar vivalma, as pessoas doces acham criticáveis. Há uma palavra inglesa – “contrarian” – para designar os sujeitos que rejeitam a opinião corrente. Não admira que não haja tradução adequada. Nem admira que a consagração da alegada “diferença” de Salvador Sobral implique um rigoroso consenso.

11. Em suma, “Portugal” ganhou o festival deste ano e a honra de organizar o do próximo. Polémicas à parte, é inegável o contributo de semelhante empreitada para o crescimento económico (e o Azerbaijão, organizador em 2012, não nos deixa mentir). No mínimo, para o crescimento económico dos indivíduos que, à revelia de maçadores concursos públicos, se agitam nos bastidores de modo a decidir o local e garantir a sua parcela. Obviamente só Lisboa (e a Arena Nãoseiquê) possui condições para receber evento tão ridíc…, desculpem, sumptuoso – além das cidades que, suponho, possuem armazéns similares. Se dependesse de mim, a escolha obrigaria a que uma junta de topógrafos e geógrafos ou simplesmente um tipo munido do Google Maps tivessem em consideração a minha casa e depois determinassem o ponto do território nacional mais distante: a pândega decorreria aí.

12. Do Minho ao Algarve – ou a Timor, que as orgias patrióticas favorecem a reabilitação do Império – não há sentença tão repetida quanto a velha “A mim ninguém me engana”. E o engraçado é que não é preciso: os portugueses enganam-se sozinhos.