Em Março deste ano, a propósito da relação entre a ditadura fiscal a que estamos sujeitos e da degradação moral que esta implica, procurei argumentar que a raiz do problema está na insaciável sede do aparelho de Estado pelos recursos dos contribuintes. É essa voragem tributária que acarreta uma crescente assimetria de poder entre a máquina fiscal e o cidadão comum. Por sua vez, a tirania do Estado perante o contribuinte assenta em mecanismos retóricos legitimadores junto da opinião pública como a célebre fábula do “combate à evasão” (uma narrativa mítica segundo a qual o aumento do poder da máquina fiscal teria como contrapartida a redução dos impostos). O resultado final é o referido estado de opressão fiscal, em que a generalidade dos contribuintes se encontra cada vez mais à mercê dos desmandos do Estado.

Retomo o tema motivado por dois outros textos. O primeiro foi uma notável entrevista ao Sol do fiscalista Tiago Caiado Guerreiro, na qual o fiscalista explica – com amplo conhecimento de causa e sibilina lucidez – o preocupante status quo no domínio tributário:

“O problema do Estado é que se aumentam os impostos porque aumenta a despesa, em vez de se cortar a despesa para não ter de se aumentar impostos. Quanto mais gordo é o Estado, mais poder tem sobre os contribuintes, de controlar e manietar, de distribuir benesses para comprar votos. É um esquema maquiavélico e destrutivo da economia. (…) A intensidade das penas que se aplicam às pessoas por incumprimento de normas fiscais é desproporcionada. Trata-se com mais violência contribuintes que não pagam impostos do que pessoas que cometem crimes de sangue. Não podemos transformar todos os portugueses em criminosos e instaurar milhares de processos-crime por ano. Os Estados Unidos, com 31 vezes mais população, só instauram 1.500 processos-crime por ano. Em Portugal somos vistos não como cidadãos, mas como máquinas de produzir receita fiscal, em que o único interesse é gerar dinheiro para o Estado.”

O segundo foi o artigo de João Miguel Tavares no Público no qual o cronista dá conta das suas desventuras e amarguras com o fisco. Qualquer pessoa decente, creio, ficará perturbada com o que é relatado e simpatizará com um autor que tantas sensações de “prazer e emoção” provoca nos respectivos leitores (“receptores”, em linguagem técnico-tributária). O que já não se compreende é que Tavares celebre “efusivamente o aperto da malha tributária”, sem se dar conta de que está a enfrentar as consequências daquilo que tão efusivamente celebra.

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Desde a inversão do ónus da prova em matérias fiscais, à facilidade de violação do sigilo bancário, sem esquecer a abjecta publicação da lista de devedores ao fisco, quase tudo no sistema vigente concorre para o abuso, a prepotência e a violação dos direitos e liberdades dos cidadãos. Os objectivos de efectiva maximização do saque fiscal tudo justificam e sobrepõem-se frequentemente aos mais elementares direitos dos cidadãos e aos mais básicos princípios de decência.

Neste sistema de “aperto da malha tributária”, os contribuintes recebem sistematicamente notificações para pagamento de dívidas inexistentes. Neste sistema, o fisco conhece e faz constar automaticamente na declaração fiscal os rendimentos pagos por terceiros, mas “esquece-se” de lá fazer constar os pagamentos por conta feitos pelo contribuinte ao próprio fisco. Neste sistema, o mesmo Estado que funciona pessimamente e desrespeita todos os prazos e processos exige sistematicamente certidões de não-dívida ao Estado. Neste sistema, quem não tem possibilidade de suportar as despesas com advogados e ainda apresentar a caução exigida tem uma hipótese tendencialmente nula de ver os seus direitos defendidos em tempo útil. Neste sistema, quem é imprudente e teimoso a ponto de insistir em tentar criar riqueza e emprego investindo em Portugal, tem a sua vida constantemente infernizada pelo Estado.

Nada disto obsta, entenda-se, a que haja gente honesta que trabalha na Autoridade Tributária, mas todo o sistema está – cada vez mais – concebido e orientado para o saque fiscal. É essa a essência do celebrado “aperto”. Aperto que uma parte significativa dos portugueses apoia com base no odioso “quem não deve não teme” (um slogan que historicamente todos os regimes totalitários subscreveriam, desde a União Soviética comunista à Alemanha nacional-socialista). Até ao dia, claro, em que a máquina de opressão fiscal lhes bate à porta.