Hoje, por vontade dos deputados do PCP e do BE, a Assembleia da República deveria ter imposto a Portugal uma história alternativa, onde Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás nunca teriam sido presidentes da república. A ambição parlamentar de corrigir o passado seria risível, se também não fosse contraditória. Estes deputados representam correntes de opinião em geral muito zelosas da memória do “fascismo”. Aparentemente, os mesmos que não nos deixam esquecer que a PIDE existiu, não querem que se saiba que o presidente Carmona também existiu. Reparem: a exposição de bustos presidenciais no Palácio de São Bento, causa desta última erupção de revisionismo histórico “anti-fascista”, não representa uma qualquer homenagem, mas apenas a sequência dos titulares da presidência da república, tal como sucede no museu do Palácio de Belém. Porque é que os presidentes do Estado Novo teriam de ser expurgados da memória histórica?

O Estado Novo foi uma ditadura, sujeitou a imprensa à censura, falsificou eleições, e prendeu, torturou, e matou oposicionistas. Não foi, porém, o único regime português que procedeu assim. A esquerda republicana, quando no poder entre 1910 e 1926, também censurou, também organizou fraudes eleitorais, também prendeu, também torturou e também matou — mas ninguém se indignou com os bustos dos seus presidentes, eleitos aliás da maneira menos democrática que se pode imaginar. É verdade que o salazarismo praticou as suas atrocidades por mais tempo e mais recentemente. Mas não há nenhuma força política neste parlamento que aspire a restaurar esse regime – como nunca houve depois de 1974. A direita democrática portuguesa jamais deixou dúvidas sobre o seu repúdio da ditadura e a sua identificação com a democracia pluralista, ao contrário da extrema-esquerda, sempre fiel a Estaline, a Trotsky e aos pequenos déspotas que aqui e ali sobrevivem da bancarrota comunista. Por que razão havíamos de ter medo de um busto de Carmona numa galeria de presidentes?

Além da nota sobre a duplicidade de critérios, a “crise dos bustos” justifica ainda outra observação: a história é sempre mais complexa do que indignações de bolso, como as daqueles que ontem compararam Carmona e Craveiro Lopes a Hitler, permitem conceber. Salazar, segundo confessou a Franco Nogueira, nunca sentiu que Carmona, republicano e maçon, estivesse totalmente do seu lado, e o nome do presidente andou, aliás, enrolado nas manobras anti-salazaristas do pós-guerra. Craveiro Lopes conspirou mesmo contra Salazar. E durante a “abrilada” de 1961, os conjurados ainda admitiram poder contar com Tomás para alterar o rumo da governação salazarista.

Não, não estou a dizer que foram “antifascistas”. O Estado Novo era uma ditadura, e uma ditadura frequentemente hedionda, mas muita gente serviu o regime ou conformou-se com ele, não porque se regozijasse com as suas brutalidades, mas porque era o que existia e não lhe via alternativa, ou até porque esperava que evoluísse para outro regime mais aberto e pluralista. Em 1968-1969, muitos dispuseram-se a confiar em Marcelo Caetano, apesar da censura, da PIDE e da guerra em África, porque se convenceram de que só ele poderia acabar com tudo isso sem precipitar o país noutra ditadura, como a oposição não parecia capaz de garantir. E houve quem, como Francisco Sá Carneiro, rompesse com Caetano quando compreendeu que não seria assim. Dizer isto não é “branqueamento”. É apenas história. E quem não percebe isso, não percebe nada, mas é verdade que os caçadores de bruxas nunca precisaram de perceber nada. Basta-lhes atear as fogueiras.

Um país não pode ter só a memória que convém a alguns. Um país não é um partido, nem um clube exclusivista. A história de Portugal é Nuno Álvares Pereira, mas também é Leonor Teles. É Salazar e é Cunhal. É Bernardino Machado e é Carmona. É toda a gente, os que achamos bons e os que achamos maus. Nem todos somos da mesma opinião, e nem sempre teremos a mesma opinião. Basta pensar no caso do marquês de Pombal. Morreu com fama de ser um dos mais corruptos e sanguinários tiranos da história de Portugal. Hoje, tem a mais imponente de todas as estátuas no meio de Lisboa.

A propósito de Pombal, aliás, houve em 1834 um episódio parecido com o dos bustos presidenciais. O arquitecto que então preparou a câmara dos deputados em São Bento resolveu decorar as paredes com nomes de figuras históricas, em letras douradas. Entre esses nomes, pôs o de Pombal. Grande burburinho, como agora. Ainda por cima, Pombal era antepassado do general Saldanha, então na oposição. Não houve conselho parlamentar, mas conselho de ministros. Decidiu-se apagar o nome com uma aguada. Mas, como conta Oliveira Martins, nos dias chuvosos, distinguia-se perfeitamente o nome de Pombal. A história vem sempre ao de cima. Às vezes, basta um pouco de humidade.

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