João Miguel Tavares perguntou ontem “por que foi tão pouca gente ao funeral de Mário Soares?”, e respondeu falando da nossa dificuldade actual de gerar heróis consensuais, como os dos Lusíadas. É uma resposta interessante, mas creio que convinha distinguir aqui dois problemas.

Comecemos pelo problema de engendrar semi-deuses. Não me parece que tenha a ver com alguma especial abjecção da nossa vida colectiva contemporânea. É uma limitação característica de regimes pluralistas com liberdade de expressão, sobretudo em momentos de tensão política, como o actual. Em Inglaterra, o funeral de Estado de Margaret Thatcher, em 2013, provocou protestos e até contra-manifestações. Mário Soares, como Thatcher, sempre dividiu as opiniões, e nunca se deixou inibir por controvérsias. Protagonizou alguns dos maiores confrontos da fundação do regime, como a resistência ao militarismo comunista em 1975, ou a execução da austeridade do FMI em 1978 e em 1983. É verdade que passaram muitos anos. Mas Soares nunca desistiu de fazer política. Nunca foi um velho estadista na reforma. Nunca deixou que nos esquecêssemos dele. É compreensível, por isso, que ainda não seja uma lenda indiscutível. Isso não o diminui, pelo contrário. É antes outro sinal de uma relevância histórica que, como no caso de Thatcher, só a ignorância pode contestar.

Parece-me, por isso, que o problema não é, nem Mário Soares, nem qualquer específica incompetência nossa para povoar panteões. “Por que foi tão pouca gente ao funeral de Mário Soares?”, pergunta João Miguel Tavares. Tentemos perceber como surgiu esta questão. Pela sede do PS, no Largo do Rato, e pelo mosteiro dos Jerónimos, passou, como seria de esperar, muita gente. Ao longo das ruas, também estiveram as pessoas que se poderia prever, sabendo-se que a morte de Mário Soares, aos 92 anos, não foi inesperada e trágica, como a de Francisco Sá Carneiro, nem a sua personalidade era objecto de culto de uma religião partidária, como Álvaro Cunhal. Mas o regime e a sua imprensa parecem ter tido outras expectativas. Foi essa talvez a origem da ideia de que houve “pouca gente”.

O ponto é este: a suposta falta de gente só se notou devido ao empenho da oligarquia em anunciar uma grande manifestação popular, e à disponibilidade da comunicação social para simular essa manifestação, quando se percebeu que não ia acontecer. Foi então que os repórteres escolheram as palavras e as câmaras seleccionaram os ângulos a fim de manterem a ficção de um povo que teria abandonado em massa casas e empregos para encher as praças e as avenidas. Na época das redes sociais, tudo isso proporcionou a circulação de comentários e de imagens a demonstrar o contrário.

A memória de Mário Soares não merecia estas mórbidas polémicas de 140 caracteres. Mas congregaram-se aqui dois interesses. Um era o da oligarquia política, de aproveitar a ocasião para se oferecer a si própria, num país dividido e inseguro, uma espécie de plebiscito de rua; o outro, era o dos jornais e das televisões, sempre ansiosos por alargar audiências através daquele tipo de emoções colectivas que costuma ser viral na internet.

Não sei se houve ou não “pouca gente” no funeral de Mário Soares. Mas o país oficial, ao antecipar o que não era provável que acontecesse e ao ficcionar, depois, o que não aconteceu, provocou provavelmente essa impressão. Quem quisesse demonstrar o fosso crescente entre a oligarquia político-mediática, e o resto da população, teria aqui um exemplo. Lamenta-se muito a demagogia dos populistas. Mas a irrealidade dos que estão no poder e ocupam os ecrãs do regime não é menos corrosiva.

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