1. Segunda, feira, 16 horas, Museu Guimet, Paris. A exposição de 113 obras primas em oiro vindas da Ásia acabava nesse dia e eu sentira subitamente saudades das várias idas ao sudoeste asiático, em trabalhos encomendados pela Gulbenkian. Resolvi entrar no museu. Na segunda ou terceira sala, o telemóvel clica, era preciso desligá-lo, tinha-me esquecido, mas ao fazê-lo vi um nome no écran, abri o sms: “os mortos dos fogos já iam em trinta e um”.
Fiquei parada a meio da sala, os fogos? Outra vez? Quais fogos? Com o estômago colado ás costas, procurei um banco, sentei-me, que fazer? Agarrar no telefone e perguntar, perguntar… Trinta mortos? Mas como era possível e onde e quando? Três dias antes, quando saíra de Lisboa, fazia muito calor, a previsão era de mais ainda mas havia apenas, um incêndio, salvo erro em Gouveia. Parti afoita, continuei afoita, tanto mais que coincidência – como ninguém da minha família próxima se encontrava por estes dias em Portugal, deixei sem remorso o país numa espécie de entre-parêntesis e nunca mais soube de nada. (Além disso Emmanuel Macron dava a sua muito esperada primeira entrevista televisiva desde que há cinco meses entrara no Elyseu, o que me fez abrir outro parêntesis, pôr Paris lá dentro e entreter-me apenas com a media francesa: atrelada às suas incessantes pré-dissecações e devorando sofregamente vaticínios e prognósticos do que diria o Presidente francês, e como e porquê)
Mas agora parada dentro do museu era como se a vida se reduzisse a um confuso novelo de perguntas e respostas, enquanto aqueles budas de oiro e aqueles animais mitológicos me pareciam subitamente grotestos e me passara qualquer vontade de sequer continuar a viagem com eles. Também percebi que naquele momento o gosto do regresso a casa iria dar lugar á pena e ao luto. Pela segunda vez em três meses tive vergonha, pela segunda vez em três meses rezei por portugueses que jamais vira, inocentes apanhados na rede do mais obsceno fracasso, na mais obscena desresponsabilização.
2. No regresso , no aeroporto, vários écrans televisivos espalham, Orly fora, por corredores e salas de embarques, imagens dantescas, “Portugal”. Há gente que se aproxima e fixa, incrédula, o écran. O país a arder, daqui a pouco não há país. Volto a sentir vergonha.
3. Há gente que não serve. Independentemente da sua competência, tendo-a ou não, não tem aquilo que desenha um carácter e exibe uma lisura de procedimentos e que vem sempre á tona em qualquer circunstancia da vida, boa ou má Esse misto de seriedade, sensibilidade, integridade, critério, que pode explicar um ser humano. Não tenho palavras para definir ou sequer caracterizar a reacção de Constança Urbano de Sousa aos pedidos de que a tirem de vez da nossa frente: um ácido, despudorado, inqualificável desabafo sobre a falta de férias que brutalmente nos expôs a nudez da sua revolta por não ter ido para a praia. E os mortos, tiveram férias? E os pais , os filhos, os netos dos mortos, foram de férias?
A sua actuação na tragédia dos incêndios — quer no primeiro acto quer agora no segundo – foi como um imenso mar de incompetência onde ela diariamente se afogava. Nunca deveria ter sido selecionada; ao primeiro tropeção poderia ter sido gentilmente mandada para donde viera, (foi óbvio muito cedo o gritante erro de casting da sua escolha). Mas Constança foi ficando. Como se nada fosse, como se nada tivesse importância, como quem decide ficar mais um bocado com os amigos, num sítio onde se sente bem. Sucede que a partir de agora todas as dúvidas nos serão permitidas sobre se terá sido um erro ou um crime a sua permanência. Posso (relutantemente) tomar como bom que no final de Setembro ainda não se soubesse que a meio de Outubro viriam de novo altíssimas temperaturas. Mas dispensar com pressa homens, máquinas e aviões com a seca em curso e depois do verão e incêndios que houve? A memória dos mortos e o sofrimento dos vivos merecia maior dignidade. Neste último acesso de calor que se abateu sobre o país, a mais simples noção de responsabilidade, a mais elementar decência, um mínimo de respeito pelos portugueses, reclamaria um imenso alerta e outra prevenção. Foi o contrário: fecharam-se os incêndios como os banheiros fecham a época numa praia.
Também ficou claro que António Costa acha que despedir a ministra seria fazer um favor à oposição em vez de perceber que era um favor ao país. Não alcançou que Portugal lhe mereceria esse gesto. Como um sinal, como um desagravo, como um pedido de desculpa que nunca se lhe ouviu e já lá vão mais de cem mortos. Pedrogão não foi ontem. Não parece estarmos a lidar com gente que sirva.
4. O primeiro-ministro disse (disse?) que “seguramente situações como as de domingo vão repetir-se”. Seria conveniente que explicasse até quantos mortos precisa ele que elas se repitam para que jamais voltem a repetir-se?
Senhor primeiro-ministro não faça chorar, por favor. E se possível a hora nenhuma.
5. Julgo que o Presidente da República, pelas palavras ditas ontem, mostrou ter a clara noção do que tem às costas. Tem o país inteiro. Portugal não sabe para onde virar-se, na sua aflição desnorteada, na sua raiva contida, na sua perplexidade muda. Tardou, é certo. Marcelo Rebelo de Sousa demorou a mostrar-nos que não apreciava o estado das coisas que chocam e enlutam Portugal desde o início do verão mas foi finalmente firme. Quase cortante. Cem mortos são cem mortos e ocorreram no seu mandato. Não podia continuar a esgotar-se em selfies. A dizer que “tudo tinha sido feito”como desgraçadamente o ouvimos dizer em Pedrogão. A refugiar-se nos seus habituais cálculos para ver “para onde isto cai”, ou sequer em esperas de mais um ou dois “relatórios independentes” ( e de que serviram?). E mesmo que a segunda tragédia, pela sua horrível natureza de “repetição”, lhe exija ainda mais abraços ( e ainda bem que ele sabe dá-los tão comovidamente) é preciso que o abraço leve consigo a decisão de mais decência e menos falhanço. Que tanto abraço sirva para mais alguma coisa do que o remake de um breve consolo num instantâneo televisivo triste.
6. Ignorando eu naturalmente os próximos episódios da saga governamental, tudo nos indica que o que quer que se siga politicamente será , como é óbvio, fruto do discurso presidencial de ontem e menos – ou nada – da vontade política do chefe do governo. E que pouco que o primeiro-ministro e os seus pares socialistas devem ter gostado: “deste” Marcelo e do que ele lhes disse.
Agora é que começou outra história.