Seis meses depois de ter desafiado António José Seguro, António Costa foi ontem entronizado líder do PS. Durante estes seis meses conseguiu uma proeza: nunca disse como, com que recursos, com que dinheiro, vai fazer diferente. Esquivo, não fala do dia seguinte, aquele que preocupa quem tem os pés na terra, elabora apenas sobre a década seguinte. Mas isso não o tem impedido de fazer mais do que promessas – na verdade tem vindo sobretudo a alimentar ilusões. Por este caminho está a colocar-se numa posição “à la Hollande”, mesmo que muitos o tenham alertado para o risco dessa estratégia.

Num congresso de que não se esperavam novidades, a novidade foi a viragem à esquerda. Viragem à esquerda na selecção de quem discursava e quem não discursava, deixando Francisco Assis de fora. Viragem à esquerda na escolha dos nomes para o núcleo duro da direcção, o secretariado. Viragem à esquerda na recusa de qualquer entendimento com os partidos à direita do PS, o novo tabu de Costa. Viragem à esquerda na preparação, desde já, de um confronto com o Presidente da República, pois é esse o significado da passagem “não podemos estar 80 dias à espera de um acordo de coligação” – se “não podemos”, então já se está a ver que, caso o PS não tenha maioria absoluta, vai pedir para governar sozinho, contra a vontade de Belém e as necessidades do país.

Em política os sinais são muito importantes, e o sinal que António Costa quis dar coloca-o bem mais longe da imagem de moderação que alimentou junto de certos sectores da opinião pública. A escolha de Ferro Rodrigues para liderar a bancada parlamentar afinal não aconteceu por acaso nem se destinou apenas a acalmar uma parte das hostes. Ao chamar para a sua direcção política deputados cujo discurso muitas vezes mal se distingue do discurso do Bloco de Esquerda, como é o caso de Sérgio Sousa Pinto ou João Galamba, António Costa não está à procura de equilíbrios, está sim a mostrar que quer um PS mais radical do que o PS histórico. Um PS radicalizado que já está, de resto, a fazer estragos, como sucedeu esta semana no Parlamento, ao romper o acordo que tinha com a actual maioria relativo à descida gradual do IRC.

Se ficarmos apenas pela superfície das coisas, típica de algumas análises políticas, poderíamos interpretar esta guinada como uma manobra destinada a tentar encurralar os partidos mais à esquerda e a impedir o crescimento eleitoral de forças capazes de pescar nas águas turvas dos “indignados”. Costa não tem ilusões sobre a possibilidade de governar em coligação com o PCP ou com o Bloco, e por isso deseja reduzir esses dois partidos à expressão mínima, única forma de poder sonhar com uma maioria absoluta (quanto ao Livre, cada dia que passa essa formação se parece mais com uma espécie de novo MDP do PS).

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Mas esta interpretação é insuficiente e é perigosa. Insuficiente porque ilude um dos problemas do actual PS, o problema de muitos dos seus quadros e militantes terem hoje uma retórica radical, uma retórica que afasta o partido do centro-esquerda e o aproxima da esquerda radical. E perigosa porque assente em ilusões que tornam o PS de Sócrates imensamente parecido com o PSF de Hollande, um partido cuja retórica recupera muitas das lógicas estatizantes e anti-capitalistas, por vezes com imaginário quase utópico, com referências discursivas que nos habituámos a encontrar apenas na esquerda radical.

Não me surpreende que um PS na oposição radicalize o seu discurso e descreva os últimos anos de forma apocalíptica. Está na natureza das coisas. Já me surpreende que o PS acredite poder alimentar a ilusão de uma viragem radical de políticas, algo que os seus quadros mais lúcidos, os que têm os pés na terra, sabem que não vai acontecer. Aliás basta ver aquilo, muito pouco, que saiu de concreto deste Congresso para perceber que o PS de Costa nem sequer sabe como fazer essa viragem, muito menos como pagá-la.

Na verdade, que tem o PS de Costa para oferecer aos portugueses? Primeiro, uma aposta na qualificação, uma velha mezinha com que todos estarão de acordo mas que, mesmo tendo êxito, nunca terá resultados no curto ou até no médio prazo. E negociações com a União Europeia, na retórica para corrigir as assimetrias da moeda única, na prática para tentar encontrar mecanismos de outros pagarem as nossas contas. É muito, muito pouco, mas revela bem um drama que não é apenas dos socialistas portugueses, é de toda a social-democracia europeia.

A verdade é que a esquerda social-democrata europeia não tem hoje respostas para os problemas europeus, sobretudo para os problemas da zona euro. Quando está na oposição, barafusta contra a austeridade. Quando governa, é obrigada a promover as reformas a que antes se opunha, reformas como as que estão a fazer Renzi em Itália e Valls em França.

Ora Costa levou para a sua direcção quadros que têm sido virulentos nas críticas não só a estes dois primeiros-ministros socialistas, como ao Tratado Orçamental, o que sugere que pretende uma qualquer nova via, capaz de descobrir dinheiro onde ele não existe e restaurar a honra perdida da esquerda socialista. Mais: deixou de fora de todos os órgãos directivos e ostracizou no Congresso um dos poucos socialistas que tem procurado, com realismo, reflectir sobre estes dilemas – Francisco Assis.

Este caminho que Costa está a seguir, mesmo sem promessas de impostos sobre as fortunas ou de descidas da idade da reforma, é o caminho que Hollande percorreu antes de chegar ao poder. E por o ter percorrido, por ter alimentado ilusões irrealistas, a desilusão foi o que foi e o que está a ser.

Para além de que Costa não vai poder aguentar mais dez meses sem concretizar as suas políticas. Houve um tempo em que o eleitorado queria ouvir promessas, mas esse tempo passou. Hoje o eleitorado exige também saber como, com que recursos, se cumprem as promessas. Ou se pagam as ilusões alimentadas nestes dois dias que foram, também, de fingimento – o fingimento de que ali ninguém tinha a nada a dizer sobre o ausente, para depois colocar a voz e o pensamento do ausente, por interpostos figurantes, no próprio secretariado.