Vivemos num tempo de interditos. Há coisas que se podem dizer e outras que se devem omitir. Quem quer que ande um pouco pelas redes sociais ou pelas caixas de comentários dos jornais sabe do que falo. Por isso, mesmo correndo o risco de chocar, não resisto a três desabafos, sobre três temas muito diferentes. Todos mereceriam maior desenvolvimento, mas para já fica o essencial.
1. Os alimentos cancerígenos.
Acho profundamente irresponsável a forma como a OMS divulgou esta semana as suas conclusões sobre as características cancerígenas das chamadas “carnes tratadas” e “carnes vermelhas”. Mas não só: começo a estar saturado com a obsessão de se ser tão saudável, tão saudável, que só se pode morrer de saúde a mais. Porque morrer, morreremos sempre: o Livro do Genesis é tudo menos uma obra científica, mas é certeiro quando nos reduz aos limites da nossa condição humana: “Recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.
A OMS foi irresponsável e alarmista porque limitou-se a dizer que esse tipo de alimentos tinham, ou podiam ter, características cancerígenas sem acrescentar nada sobre o grau de risco envolvido – que é baixo, incomparavelmente mais baixo do que fumar, por exemplo. Pior: sem dizer que a proteína animal integra da nossa alimentação desde sempre e que esse tipo de carnes têm na sua composição vitaminas e minerais que nos fazem falta.
Conheço muitos vegetarianos que se dão bem com a sua opção, tal como conheço fundamentalistas que andam por aí com ar macilento e triste. É com eles. Tal como é comigo seguir uma velha máxima da minha avó: “perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe”.
Não ficarei cá para semente – ninguém ficará – e sinto que muitas vezes estamos a esticar a vida para além do que seria natural, e que com esta mania de tudo ter de ser saudável abrimos as portas às fúrias regulamentadoras dos gramas de sal no pão, dos graus de pimenta onde calhar, das dosagens dos conservantes nas bebidas e, não tarda nada, das horas de fermentação de um queijo ou dos dias em que se pode deixar um presunto no fumeiro. Pelo caminho que vamos, é só uma questão de tempo.
Aqui há uns tempos alguém se insurgia aqui no Observador por estarmos a criar gerações de crianças “totós”. É pior do que isso: estamos a transformar-nos numa sociedade de “totós”, cheia de medos e incapaz de desfrutar as alegrias e os prazeres simples da vida. Como as que temos às refeições, sobretudo naquelas onde passamos o tempo a falar de outras refeições e outras comidas.
2. O milhão de eleitores excluídos.
Vai por aí uma enorme preocupação por existirem em Portugal um milhão de eleitores que, votando em determinados partidos, seriam como que “excluídos” do nosso sistema político. Felizmente a questão não é essa – não é em Portugal como não é na França, onde a percentagem de “excluídos” (os eleitores da Frente Nacional) ainda é mais elevada. A questão é que esses eleitores, ao fazerem livremente as suas escolhas eleitorais, sempre optaram por se auto-excluir de soluções de governo que respeitem os valores do resto dos eleitores – que são a maioria.
Já estou a ver gente aos saltos por estar a comparar o banimento assumido da Frente Nacional – em nome do que se designa como “frente republicana” – com aquilo que sempre se passou com os nossos partidos de extrema-esquerda. “Não tem nada a ver”, indignar-se-ão.
Não tem nada a ver? A Frente Nacional é banida porque tem comportamentos xenófobos e um programa que recusa a integração dos que são diferentes. Ou seja, tem um programa que a coloca à margem dos consensos que sustentam as nossas sociedades abertas e tolerantes. Como é fácil arrumá-la na extrema-direita (apesar de um programa económico iliberal e estatista, muito semelhante ao das esquerdas), ninguém protesta.
Já quando toca à extrema-esquerda, tudo passa a ser diferente. Eles são “generosos”, “solidários”, ele querem sempre o bem dos pobres e dos desvalidos. Logo, fecha-se os olhos a tudo o resto. À sua intolerância e sectarismo. À forma como também eles recusam e combatem as nossas sociedades abertas. Ao egoísmo com que defendem os interesses corporativos dos grupos que representam.
Pior: fecha-se os olhos a grande parte dessa extrema-esquerda – o PCP, mas também a facção UDP do Bloco – continuar a defender ideias revolucionárias que, sempre que foram postas em prática, resultaram na destruição das liberdades, na pobreza e em perseguições que provocaram mais milhões de mortos que o nazismo (isso mesmo, por muito que custe acreditar). Tal como se fecha os olhos à ausência de liberdades e à pobreza da Cuba castrista e, agora que faltou o dinheiro do petróleo, à Venezuela bolivariana
Para mim, que com a mesma idade com que António Costa entrou para a JS (15 anos) me envolvi em movimentos antifascistas e ainda passei uma noite preso, para mim que vi por dentro o que são as organizações comunistas, para mim que li e estudei muito sobre a forma como pensam e como agem os marxistas-leninistas de sempre, ser anticomunista é tão natural e saudável como ser antifascista, ou anti-Frente Nacional. Mais: sei, porque aprendi, pratiquei e depois vi como, um pouco por todo o lado, a sua arte é o disfarce pois a sua força é a ortodoxia, a sua “certeza de estarem do lado certo da História” e, por isso, desprezarem todos os demais.
Mesmo assim têm muitos eleitores? É verdade, têm demasiados eleitores. Mas quando se lhes dá a mão ainda podem ficar com mais. Quando se copia o seu discurso, baixam-se as defesas e confundem-se os cidadãos (exactamente o mesmo, mas de forma simétrica, se passa com a adopção das bandeiras da Frente Nacional e de outras organizações semelhantes por políticos da direita democrática que deviam ser mais responsáveis, mais corajosos e mais determinados).
Por tudo isso não me venham com a lengalenga de que se quer excluir do jogo democrático um milhão de eleitores – os partidos que os representam é que não querem juntar-se, sem segundas intenções, com lisura, sem chantagens, ao jogo democrático. Fazem-no, continuam a fazê-lo apesar do nevoeiro que criaram, porque nunca desistiram de ser revolucionários, algo que nem sequer escondem nos seus programas. Eles não querem melhorar as sociedades em que vivemos, eles querem construir sociedades utópicas que sempre foram prisões dos povos. Eles não jogam pelas nossas regras, apenas tiram partido das nossas regras, da nossa tolerância e do nosso apreço por aquilo que mais detestam: o pluralismo, o apreciar que existam pessoas que pensam diferente, e se exprimem de forma diferente.
3. Não se pode duvidar da boa causa dos refugiados.
Quando vi pela primeira vez a imagem da criança afogada numa praia da Turquia não hesitei um segundo: como é que a podemos divulgar o mais depressa possível no Observador? É importante que todos saibam o que se está a passar, que os mortos não são estatísticas – têm nomes, rostos, famílias, um seu mundo, por pequeno que ele ainda seja. E assim fizemos, dando àquele drama particular todo o destaque que merecia.
É evidente que a tragédia que de que aquela fotografia era um potente símbolo só podia e pode suscitar a nossa compaixão. Não duvido que temos deveres de solidariedade. A brutalidade do Viktor Orban choca-me. O gesto generoso de Angela Merkel sensibilizou-me – e reforçou a convicção de que ela é a única grande estadista da Europa contemporânea, algo que um dia todos reconhecerão. E quando vejo as imagens quase bíblicas daquelas colunas de refugiados a cruzarem os campos dos Balcãs só posso interrogar-me sobre os horrores de que eles fogem.
Contudo…
Contudo esta não é toda a realidade. Nós estamos no outro lado da Europa, o problema lá longe, mas há muitas questões que temos de colocar. Que mesmo os líderes mais moderados, até os mais à esquerda, desses países já estão a colocar (vejam como a Áustria, governada por um socialista, também vai erguer a sua vedação fronteiriça…).
Uma coisa é dizer que a Europa necessita de sangue novo, por causa da sua demografia e da sua economia. Outra é pensar que é fácil integrar centenas de milhares (milhões?) de pessoas de culturas diferentes, mesmo contrastantes, sobretudo quando essas pessoas não mostram vontade de ser integradas.
A Europa não é como o “melting pot” americano, que mais do que uma mistura de culturas é uma matriz – e um patriotismo constitucional – que molda os que chegam à terra do Tio Sam à sua imagem e semelhança (e mesmo assim isso está a mudar com imigração de tantos hispânicos). Não é essa a nossa tradição, bem pelo contrário: a Europa é o continente onde o nacionalismo foi, até há bem pouco tempo, o motor de sucessivas e gigantescas limpezas étnicas e transferências forçadas de populações em nome… da paz (quem duvide, que leia “Pós-Guerra”, do insuspeito Toni Judt).
Pior, porventura muito pior e muito mais decisivo: quantos dos refugiados que nos batem à porta querem ser europeus? Quantos aceitam os nossos valores? E quantos, pelo contrário, chegam para exigir que sejamos nós a adoptar, ou pelo menos a tolerar, os seus valores e os seus hábitos, muitos deles detestáveis e retrógados?
A verdade inconveniente é que há aqui peças que não encaixam. E um mal-estar que não pode deixar de explodir mais tarde ou mais cedo. Isso já é visível em muitas cidades europeias, mas preferimos fingir que o voto em certos partidos populistas é só uma aberração, quando na verdade é a expressão de um sentimento de desconforto que pouco ou nada tem a ver com as velhas divisões ideológicas do passado.
É muito bonito e muito fácil falar de uma política de portas abertas, sobretudo se forem as portas dos outros. É muito fácil condenar mesmo movimentos pacíficos como o Pegida alemão, que se manifesta de velas na mão e só diz alto o que muitos sussurram em privado: que não deseja a islamização da Europa. Eu também não desejo. Eu também a acho perigosa. E por isso não posso deixar de pensar que a melhor forma de lidar com o problema dos refugiados não é abrir-lhes as portas, é criar condições para os acolher o melhor possível em zonas protegidas mas o mais próximo possível do seu ponto de origem – até para que possam regressar a casa logo que possível.
Sempre houve migrações, constantes migrações, na história de Humanidade. Quando se transformaram em avalanches acabaram mal. E às vezes nem foi necessário tanto. Não há gesto mais bonito e cristão do que estender a mão – mas isso não implica estar disponível para levar logo uma bofetada. Não é altura nem fenómeno face ao qual se possa, piamente, oferecer a outra face. O melhor é mesmo controlar as fronteiras, por muito duro que isso possa parecer hoje. Mas se não o fizermos agora podemos não gostar nada, mas mesmo nada, da Europa de amanhã.
Siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957).