Em ciências sociais um dos métodos de trabalho mais seguro, se não o melhor, é o método comparativo, inclusive entre o que parece longe de comparável… É isso que me proponho hoje fazer perante a comemoração do primeiro aniversário do nosso actual governo e o vertiginoso afundar de várias auto-designadas esquerdas apertadas pelos populistas, a fim de perceber por que razão a velha social-democracia, ao mesmo tempo que se deixa cavalgar pelo populismo de esquerda, tem tendência a ser ultrapassada por este ou, inversamente, a empurrar para a frente o populismo de direita.
O caso mais clamoroso é o do suicídio virtual de um líder socialista improvisado pelo sistema das chamadas «primárias» em Espanha. Com efeito, o incipiente Pedro Sánchéz acaba de ser obrigado a ajoelhar perante a sageza do PSOE com os seus 140 anos de boas e sobretudo más experiências. Podem os fãs portugueses de Sánchez lamentar que o futuro governo espanhol seja assim entregue ao PP, ao mesmo tempo que o PSOE se deixou «podemizar» e cortar como salame de eleição em eleição, sendo hoje o segundo partido da esquerda institucional que mais votos perdeu no século XXI (mais de metade!) a seguir ao PASOK, em virtude da «syrização» deste último …
Quanto ao PS, perdeu um terço dos votos desde 2005 até às eleições do ano passado. Dir-se-á que o PS não é o PSOE e que António Costa não é Sánchéz, mas lá que o BE e o PCP juntos têm vindo a «podemizar» o PS e que este tem vindo a perder votos em massa, lá isso têm! Adiante voltaremos ao caso espanhol, o qual pode vir a alargar-se ao caso francês se François Hollande ceder à esquerda e o eleitorado desta última se vir de novo obrigado a votar em Sarkozy à segunda volta para impedir a eleição de Marine Le Pen!
Entretanto, vale a pena reflectir no caso do Brasil, onde mais «golpe» ou menos «golpe» para afastar o PT, o certo é que a primeira volta das eleições municipais de domingo passado já fizeram perder dois terços das «prefeituras» ao PT na primeira volta, não só na metrópole de S. Paulo, onde o «prefeito» do PT foi esmagado pelo candidato do actual governador do Estado (PSDB), mas também num sem número de câmaras do Nordeste, onde o PT havia penetrado graças ao famoso «bolsa família» e onde, possivelmente, regressaram ao poder muito antigos «coronéis» associados ao partido do novo presidente (PMDB), passando o PT de terceiro a sétimo nas municipais! Entretanto, o partido que governou o Brasil durante mais de 13 anos vê-se de súbito sem votos, sem liderança e sem linha de rumo.
Em vez disso, o que pode aliás explicar em parte a perda de votos do PT, aumentou muito o número dos abstencionistas e dos votos brancos e nulos, num país onde o voto é supostamente obrigatório. Um comentador do artigo citado acima, exclamava: «O povo já está deixando de ser trouxa, o que foi revelado não só pela humilhante derrota quanto pela grande quantidade de abstenções, votos brancos e nulos». Trate-se ele ou não de um provável adversário do PT, o importante é o aumento do abstencionismo, o qual caracteriza há muito o eleitorado português com uma das mais altas percentagens da Europa. É uma expressão mais do desagrado dos eleitorados com a oferta partidária mas que se esconde frequentemente nas sondagens e afecta os partidos de forma desigual.
Também em Espanha o abstencionismo tem aumentado perante o tacticismo dos partidos e, em particular, as tentativas de ultrapassagem do PSOE pelos «esquerdistas», com os seus «slogans» maximalistas e com a turbulência própria dos novos grupos de assalto ao poder. É aquilo a que uma analista chama a «podemização» do PSOE e que acabou por lhe valer o descalabro.
Ora bem, para fechar este exercício comparativo, como todos observamos diariamente, o PS não está isento das tentativas de ultrapassagem por parte dos seus aliados governamentais. E não é cedendo um imposto aqui e uma série de empregos ali que o PS vai calar as declamações do BE e as reivindicações do PCP. Com efeito, o que caracteriza a nossa vida política diária é esta tentativa permanente de ultrapassagem do PS por parte dos seus indispensáveis aliados, a par do respectivo risco de derrapagem. Acontece, porém, que mal o PS ameaçar com eleições, o BE e o PCP terão de se afastar velozmente do governo a tempo de evitarem perder votos para o PS quando surgir o risco de as eleições se precipitarem. O BE e o PCP serão obrigados, nessa altura, a arreganhar os dentes um ao outro e, sobretudo, para obrigar o PS a sair do actual jogo de cintura ideológico. O resultado desta mútua cavalgada será que o conjunto dos três partidos, dividam-se lá os votos como se dividirem entre eles, perderá votos: do mesmo modo que, quando o Podemos ganha, o PSOE perde e vice-versa, abrindo-se a possibilidade a que o PP ganhe sozinho ou com a ajuda dos Ciudadanos, como parece que irá suceder em Espanha. De forma equivalente, quando a ocasião surgir, não é impossível que a tentativa de ultrapassagem de uns pelos outros não só beneficie a actual oposição como torne mais difíceis as relações futuras entre os aliados da actual «geringonça».