Aquilo com que a Europa lidou ou tem lidado nas ultimas décadas, sumiu-se do mapa político grego. A direita moderada limitou-se a resistir, o Pasok ficou reduzido à condição de sem abrigo. Não basta dizer que talvez “merecessem”, nem é fácil arranjar um descodificador: o certo é que não há referências que nos habilitem a saber lidar com isto. Um quadro “novo” feito de algumas coisas desafiantes, outras feias, outras brutais. Um desconhecido indesejado, em suma.
Como detesto fazer de conta e me recuso a pousar um olhar manso sobre o que está assanhado, só posso juntar-me ao coro onde cantam os que estão tão preocupados como eu: o momento é perigoso, sob vários pontos de vista.
É perigoso na Grécia: que estabilidade, que articulação, que jogo político sério pode resultar de tão estranha e indigesta aliança governamental, olhada – temos de o repetir mil vezes, todos os dias, a toda a hora! – com tanta e tão amorosa complacência? Um casamento sulfúrico consumado num país à beira de todos os abismos – e lembremos que um dos abismos é dentro de pouco tempo a Grécia não dispor de liquidez para que o Estado assuma as suas funções. E outro é a falta de estrutura, raiz, substância, experiência, conhecimento, passado, regras, do Syriza.
É também perigoso na União Europeia pelo trabalho (de renda ou de aço?) que vai exigir nas negociações económicas entre Bruxelas/Berlim/Atenas, tanto mais que o tom usado desde domingo pelo novo ministro grego das Finanças (ainda não lhe decorei o nome, lá chegará), é exclusivamente o preto e o branco: a Grécia ficará com os brancos perdões, os “outros”, quaisquer que sejam, com o pagamento das negras contas.
É perigoso para o euro, claro, e para a sua viabilidade e o seu futuro (como estará a Grécia face á moeda unica daqui seis, oito meses? Mantém-se no clube, está em vias de sair, já saiu?).
É ainda perigoso pelas implicações que qualquer decisão comunitária fatalmente terá no difícil equilíbrio entre os Estados membros, face às extremadas pretensões gregas, e seja num sentido ou noutro, ou mesmo num “meio caminho”. E é sobretudo perigoso porque subitamente há um parceiro político do qual quase tudo se ignora (a não ser o seu bom coração face ao sofrimento do povo grego), mas que já sinalizou ter pontos cardeais que podem desnortear – ou vir a pulverizar – as coordenadas políticas que a Europa conhece desde há décadas e “normalmente” usa e pratica.
Os ventos gregos trazem alianças e intenções de tal forma dissonantes que no fim da linha não se sabe de quem serão os despojos e as ruínas. Os mais simplistas dirão que estou “alarmada”, a má-fé vigente acusar-me-á de defender (?) a austeridade “punitiva”. É um pouco mais complicado que isso, basta saber olhar para o quadro sem o virar o contrário e já o escrevi aqui há dias: não, não está tudo do lado de Berlim/Bruxelas mesmo que pareça, está só uma parte. A maior parte, a parte de leão, está com os gregos. A história da Rússia é um mau começo e um mau sinal.
De forma quase geral – houve algumas honrosas excepções mas espantosamente só algumas – as nossas manchetes e ecrãs televisivos preferiram pôr a responsabilidade unicamente do lado de uma “Europa” obrigada a vergar perante um novo governo democraticamente eleito, colando-se festivamente ao “fim da austeridade”, discurso único da vitória grega.
Era bom mas é falso. Como se uma trapalhada daquela monta social, económica e política pudesse ser reduzida ao grito de guerra de Dario Fo “não se paga, não se paga”, declarado unilateralmente. E, logo a seguir… a trapalhada seria salvificamente resolvida por um “não pagamento” de jacto.
Falta sempre a outra metade a esta gente do Syriza, aparentemente com tanto encanto: saber quem pagará a raiva originada pelos próprios erros, mesmo que se considere e eu considero que houve erros troikianos. Ninguém? É indiferente? Logo se vê? Não é preciso? Passa (unilateralmente) a não ser preciso pagar?
Sucede que o unilateral clamor tem ainda outra desvantagem que não é de somenos: irritar em vez de, si j’ose dire, enternecer os credores para a (insustentável, é verdade), situação grega. Há dias li num estudo sobre a economia grega que os cabeleireiros e as massagistas beneficiavam de uma reforma aos (cito de memória) 52 anos por serem considerados “profissões de risco ”, parecendo-me aqui haver pouquíssima austeridade (faço ideia com idade se reformará um domador de leões…).
Mas desenganem-se: não estamos perante um vulgar exemplo de “dois pesos e duas medidas”, o que já faria suar, de tão pouco sério. Estamos diante do mais complexo caso político europeu dos últimos cinquenta anos.
Que o mesmo é dizer que, como qualquer pessoa no seu perfeito juízo, a partir daqui eu só posso fornecer muita preocupação e pouquíssimo júbilo. Quem não quiser que não se sirva.
2. Que será feito do Atlântico? Apetece até perguntar aos nossos dirigentes políticos – a estes mas também a outros – se se esqueceram da nossa pertença e da nossa responsabilidade para com esse mar como quem se esquece dos óculos em cima da mesa?
Talvez valesse a pena interrogarmo-nos sobre o que “se” tem andado a fazer para cuidar das obrigações que nos cabem nesse domínio que foi alias para nós uma escolha. E nem é preciso recorrer ao Conceito Estratégico de Defesa Nacional onde se certifica que a segunda opção geográfica do país em matéria de política externa é o Atlântico. E quem compreende os equívocos e zig-zag diplomáticos da nossa relação com os Estados Unidos com o recente episódio das Lajes onde se fez depender a boa saúde dessa relação transatlântica com as vantagens lusas do uso americano de uma base militar açoriana, sem perceber nem acautelar a indispensabilidade dessa mesma relação? Não fora a (obrigatória) coluna de Miguel Monjardino no Expresso e depois o texto de Teresa de Sousa (Público) revelando o desconforto face ao comportamento de Portugal na questão das Lajes, e ele teria passado como normal ou verosímil, quando não foi nem uma coisa nem outra, mas sim um péssimo sinal. E o mais revelador sintoma daquilo em que imperdoavelmente quase se tornou hoje a relação entre Lisboa e Washington
É certo que a crise e as suas exigências atiraram o país para dentro da malha apertadíssima da Europa, obrigando-nos a cuidar mais do eixo Lisboa/Berlim/Bruxelas e com isso descurando a vertente atlântica. Tendo que fazer escolhas difíceis e com recursos magros, Portugal foi mais continental que marítimo, mais europeu que atlântico.
É certo mas está errado: sem estratégia política nem substância diplomática para o resto que era imenso, o caminho ficou semeado de equívocos. Não admira que a disponibilidade dos nossos “amigos” do outro lado do Atlântico para contarem connosco seja hoje mais diminuta, mesmo tendo em conta que o mundo mudou, as prioridades geo-estratégicas são outras e a nossa irrelevância maior).
”Gostava de perceber qual é a nossa visão para o Atlântico. E, já agora, que vontade política, recursos e meios temos para um território que ainda é nosso”, dizia-me ontem o mesmo Miguel Monjardino sobre este estado de coisas.“A presença norte-americana nas Lajes teve uma consequência nefasta – anestesiou-nos em relação à necessidade de pensarmos e fazermos opções sobre o território nacional.”
Não se pode ser mais claro.
Infelizmente parece que a ninguém ocorreu que a nossa extrema atenção à crise e a uma opção externa mais “continental” fosse acompanhada por outra atenção ao “lado”atlântico, ao nível político-militar. Foi quase o contrário: Lisboa preferiu tornar a relação com os EUA refém do futuro das Lajes. Ainda Miguel Monjardino: “Ao mesmo tempo que criticava politicamente a opção do Pentágono em diminuir o contingente militar norte-americano nas Lajes, Portugal fez o mesmo silenciosamente: a presença da Força Aérea Portuguesa na BA4 resume-se agora a um destacamento que, por muito profissional que seja, só com dificuldade e sacrifício cumprirá as suas missões no Atlântico.”
Num discurso que fez no início de Janeiro, o actual titular do Palácio das Necessidades exigiu (?) três coisas distintas aos Estados Unidos: a primeira, (“maximização da utilização da Base das Lajes) estava fora de prazo já que Portugal não podia ignorar que a alteração da visão estratégica norte americana para o uso das Lajes implicava uma diminuição dos seus contingentes militares, o que colidia com o conceito de “maximização”; a segunda, (o “reforço do relacionamento estratégico entre os dois países;” ) destoava do actual momento das relações entre os dois países; e a terceira (“uma decisão que não seja penalizadora para a população da Ilha Terceira”) quase afligia um comum mortal pela confusão que fazia entre desemprego e política externa. Washington ignorou tudo. Riscos altos, consequências previsíveis.
Em resumo: o que ocorre na politica externa nacional resultará de opções políticas com consequências ao nível estratégico em que a mais óbvia – e não menos inquietante – é que a actual situação geopolítica no Atlântico parece exigir uma opção geoestratégica diferente da nossa parte.
Infelizmente tenho de concordar ainda com Miguel Monjardino quando ele “teme” que a decisão do Pentágono no dia 8 de Janeiro – apenas uns dias depois da confirmação do reforço da relação militar Washington-Madrid – “possa ser lida como uma espécie de cartão amarelo político-diplomático por parte da administração Obama a Lisboa.”
É que só a “Europa” não chega. Nunca chegou. Nem tão pouco convence como “via única” a alguns convictos atlantistas como eu (pensar que é lá, nos Estados Unidos, que temos um dos nossos melhores diplomatas, Nuno Brito de seu nome, torna o espanto maior).
3. Perdi tempo mas ganhei “realidade”: durante a manhã de ontem fui ouvindo inúmeros comentários radiofónicos e outros sobre a avaliação dos professores. Desabafos irados, críticas azedas, clamores raivosos, afirmações de ódio, numa avalanche – quase sem excepção – de palavras ressentidas de destinatário único: o ministério da 5 de Outubro. Fica-se de boca aberta.
Só há “um ponto”nesta triste história e não dois ou três “ângulos” de visão, interpretação ou perspectiva: nenhum professor pode dar erros. Tudo o resto que se disse e eu ouvi é mero subterfúgio (e refúgio atabalhoado para o inconcebível resultado). Mas parece que a culpa foi da prova que “não era fiável”! Entre outros exemplos de “culpa”.
Em Portugal e até dói constatar sempre o mesmo: a culpa é sempre, sempre, dos outros.