Há uns anos um autarca confessava que era de facto muito importante investir no tratamento de resíduos, mas as pessoas não valorizavam. Traduzindo: ninguém votaria nele se gastasse no que era importante em vez de ir alimentado o povo com festas e bolos, como alcatroar estradas que estão boas mas por onde muito gente passa, ou rotundas com relva e flores, ou ainda um centro cultural por autarquia, ou ainda mais recentemente uma proliferação de passeios pedonais e para bicicletas. O país era (é) o reflexo em grande dessas prioridades. A generalização das auto-estradas é um bom exemplo. Tudo isso sim, dá nas vistas. Como um bom “novo rico”, o que está debaixo do tapete pouco importa.

Quando a troika chegou a maioria aplaudiu e parecia de facto farta desse esbanjamento, parecia que se tinha percebido que andávamos a ver o mundo ao contrário, que em vez do importante tínhamos valorizado a imagem. Um pouco como acontecia há algumas décadas quando víamos um grande carro em frente de uma barraca e não percebíamos as prioridades de quem lá morava. O país parecia ter percebido que não podia nem queria ser uma barraca com um carrão à porta. Até que percebeu que para ter uma casa melhor tinha de ter um carro pior. E, aparentemente, regressámos ao que éramos. Ou pelo menos é essa a imagem que nos dá aquilo que nos aconteceu nos últimos tempos e que queremos, com todas as forças que temos, atribuir à fatalidade, ao fado.

Façamos uma descrição seguindo a linha do tempo, mais recente, e evitando ir mais atrás. Primeiro a possível fuga de informação do exame de português. Os valores éticos e morais subjacentes na mensagem da aluna e a reacção do Ministério da Educação são dolorosamente reveladores de como estamos a ver-nos uns aos outros ao espelho, o povo e os políticos que nos governam. A aluna, para quem é normal revelar-se o conteúdo de um exame por, supõe-se, uma professora activa no sindicalismo e como tal “comuna”, tem uma quantidade enorme de pré-conceitos e valores já completamente distorcidos. Sim, a maioria dos alunos não perderia esta oportunidade. Mas nem todos, queremos acreditar, ficariam imunes, sem qualquer tipo de revolta moral, a uma coisa destas. Depois o Ministério da Educação: não se anula a prova, vai-se investigar. Esperemos que o resultado não seja aquele que se viu por exemplo no caso do erro estatístico das transferências para os ‘off-shores” – não houve mão humana, concluiu-se. Ou ainda da lamentável conclusão preliminar da comissão parlamentar de inquérito à gestão da CGD.

Mas tudo isto são pequenos eventos, que nos podem chocar mas não nos põem boquiabertos com o estado do Estado.

É no incêndio de Pedrogão Grande que nos confrontamos com o grau de desorganização do Estado numa das suas funções nucleares: a garantia da segurança dos cidadãos. Morreram pessoas num incêndio e aquilo a que assistimos é a mil e uma explicações. E aquela que se aproxima mais da nossa cultura de “fado” a assume-se como possível logo nas primeiras horas do incêndio, validada pela Polícia Judiciária. Explicação que seguiu o tom dado pelo Presidente da República – fez-se o que se podia, foi uma fatalidade.

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E não foi. Quem não sofre de clubismo partidário ou quer conhecer a realidade sabe que não foi uma fatalidade, foi um Estado burocrático, adormecido, abandalhado e desorganizado que entrou pelos nossos olhos a dentro nesses dias de terror em Pedrogão Grande e matou pessoas e deixou centenas sem lar. E depois há a reorganização da floresta que não se vê, que não dá votos.

Quando pensávamos que tínhamos atingido o grau zero, eis que sabemos que em Tancos roubaram calmamente e selectivamente material bélico capaz de deitar um prédio abaixo. Até nas Forças Armadas chegámos ao estado de “deixa andar, tanto faz e logo se vê, não te preocupes”. Tínhamos um espaço recheado de material bélico sem vigilância adequada e com uma vedaçãozinha mesmo ali ao lado da A23? Na era do terrorismo?

Não, demitir ministros não resolve nada como não resolveu no passado. Mas ao menos podíamos manter esse padrão ético de exigência e responsabilidade. Um ministro tem de saber que lhe é pedido, no mínimo, que garanta o funcionamento dos serviços que tutela. Essa exigência é reforçada num país como o nosso, onde as principais lideranças dos serviços públicos são ocupadas por pessoas da confiança dos ministros ou do partido que ocupa o poder. No caso da Administração Interna e da Defesa essa sua obrigação, de garantir o bom estado do Estado, é ainda mais premente. Estamos a falar daquele que é o núcleo do Estado.

No caso da ministra da Administração Interna, o que está em causa não é obviamente a ministra ter chorado – perante aquela tragédia de Pedrogão todos chorámos. O que está em causa é Constança Urbano de Sousa não ter tido a noção do estado em que tinha os importantes serviços que tutela, nem os ter orientado para a época de incêndios. Menos grave mas não menos importante é o facto de ter focado frequentemente a mensagem em si própria e no que estava a sentir. Naquela altura tinha de falar para quem estava a sofrer muito mais do que ela e para todos os portugueses. Também o ministro da Defesa mostrou não ter a noção da falta de segurança do armamento em Tancos. Tinha de o saber e não pode nem deve usar como argumento a falta de dinheiro. Como também não pode dizer que não foi informado – se não foi era sua obrigação ter pedido informação.

E não, não é a falta de dinheiro que explica o roubo em Tancos ou as mortes no incêndio de Pedrogão Grande. Se há menos dinheiro é preciso definir prioridades e aplicá-lo no que é importante e não no que serve objectivos eleitoralistas ou de vida de rico com casa de pobre.

Aquilo que nos tem acontecido nos últimos meses coloca-nos perante a imagem de um país desorganizado, desresponsabilizado. Uma cultura de rigor, exigência e responsabilidade não se compra com dinheiro. Conquista-se com políticas que combatem o facilitismo e incentivam a exigência e a responsabilidade.