Suponho que a maior parte dos portugueses vê as coisas políticas mais ou menos como eu as vejo: procurando, de acordo com o seu privado juízo, detectar de onde vem o mal pior e tentando evitá-lo. E, consequentemente, não lhes dá guarida na cabeça para além do estritamente necessário. Mais: vê os entusiasmos na matéria, nomeadamente os dos aficionados dos partidos, com desconfiança, senão com repulsa. E encara a exposição de grandes teorias da sociedade com um saudável cepticismo. Bom, se não é assim, devia ser, que era melhor para todos.

As extraordinárias dezassete personalidades que, até agora, se declararam inteiramente disponíveis para se tornarem o nosso próximo Presidente da República não têm, com provavelmente duas ou três excepções, nada de assinalável. Ninguém as conhece – eu, pelo menos, ignoro perfeitamente o nome da maioria – e não têm hipótese alguma de se elevarem ao nobre cargo. O interesse que podem despertar é meramente sociológico, ou, melhor ainda, psicológico: o que leva alguém de perfeitamente desconhecido a julgar-se habilitado a merecer um afectuoso sinal de gratidão dos portugueses? Mas os dois ou três casos que escapam à regra do anonimato, por feitos antigos ou recentíssimos, suscitam, em função da regra enunciada no início desta prosa, alguma legítima curiosidade.

Foi dentro deste espírito que li a entrevista de António Sampaio da Nóvoa, que há pouco se tornou conhecido por ser conhecido e gostar de ser conhecido, ao Expresso do último sábado. E saí da leitura propriamente aterrado. Com todo o respeito, nunca vi uma tal mistura de indefinição, inconsciência e exorbitante amor de si em duas páginas de jornal. O que, dada a frequência com que estas três características se solicitam umas às outras, é obra.

Não resisto a começar por um poema. Porque Sampaio da Nóvoa ofereceu ao Expresso um poema, composto enquanto o fotografavam, prova indisputável de que, como diz o Expresso, é “homem de letras”:

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“E depois
Do dia de amanhã
Chega ontem.
E então fomos presente.”

Não cito o poema por propensão ao gozo maligno ou para discutir os seus méritos literários, o que seria, no mínimo, penoso, mas apenas para sublinhar o formidável grau de inconsciência que o acto de oferecer uma coisa assim a órgãos de comunicação social sugere.

Essa inconsciência manifesta-se amplamente na entrevista propriamente dita. E, em primeiro lugar, na intensa auto-satisfação que visivelmente experimenta em ser quem é. À pergunta: “Não tem faces más?”, responde, com indisfarçável sinceridade: “Não dei ainda por muitas.” É, por exemplo, exímio em “aproximar posições muito contrárias” – o que não o impede de afirmar que, no caso de ser eleito, “será mais fácil conviver com uns partidos do que com outros”. Mas é assim porque, como diz, “está no [seu] ADN”. Bendito ADN, que o leva a detestar “pessoas que fracturam tudo, mesmo dentro dos próprios partidos”. Uma espécie de ADN adesivo.

Junto a essa intensa virtude unitiva, aparecem várias outras. Não saber mentir, por exemplo: “Eu sou incapaz de mentir ou de ocultar alguma coisa e isso acaba por transparecer.” Não gostaria de elaborar muito, mas alguém poderia explicar ao Prof. Sampaio da Nóvoa que, tirando no que respeita às crianças, a incapacidade de mentir não corresponde exactamente a um mérito excessivo. E que isso “acaba por transparecer”. Não mentir deve resultar não de uma ingenuidade primordial e atávica, mas de um esforço que a nós próprios mais ou menos à força nos impomos, e que é compatível, graças a Deus, com vários tipo de reservas (de “ocultações”, como ele diz).

Tanta admiração por si mesmo leva Sampaio da Nóvoa a conceder-se, muito legitimamente, um sonho. O de ser “um PR capaz de ir às Nações Unidas, bater-se por determinadas causas”, “um PR mais global”. Aqui chega a ser quase tocante: “Era tão bom sentarmo-nos à frente da televisão e ver um PR nosso a defender causas no mundo inteiro.” Confesso – até porque chega a ser, como disse, tocante – que nem sei que dizer. Prefiro deixar a ilusão intacta. E imaginar, como Sampaio da Nóvoa, famílias embevecidas por esse Portugal inteiro a dizerem, à hora do jantar: “Olha, é o nosso PR! E que bem que ele fala e os estrangeiros todos caladinhos a ouvi-lo com muito respeito!” Meu Deus!

À auto-satisfação acrescenta-se a ideia da inequivocidade, da perfeita definição, do seu próprio pensamento. Como diz, “não há nenhum tipo de equívocos sobre o que penso para o país”, “os portugueses não precisam de coisas indefinidas na política”. Lamentavelmente, a entrevista é um rol de equívocos e de indefinições. Quer sob a forma da omissão, quer sob a da generalidade. Esqueçamos a indefinição sob a forma da omissão (“Jamais comentarei posições do dr. Mário Soares”, por exemplo) e concentremo-nos no amplo e generoso capítulo da indefinição por generalidade.

Que pensa da liberdade? “Sei que há certas liberdades de que a esquerda gosta. Outras que a direita preza mais. Eu sou por todas (…)”  Não ocorre ao Prof. Sampaio da Nóvoa, aparentemente, que entre um e outro tipo de liberdades há por vezes conflitos e que, mal ou bem, é preciso decidir. Ser por todas, na prática, não dá. A não ser na célebre versão de Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se não gostarem deles, tenho outros”. Mas duvido que seja essa a doutrina de Sampaio da Nóvoa. Apesar de tudo, parece um tipo humano muito diferente do de Groucho. Outro exemplo de indefinição por generalidade, que participa também do espírito “sou por todas”: “Se há um slogan na minha cabeça é: nada contra os partidos, tudo pela cidadania”. Coisa tão vaga, que nada diferencia ou determina, não quer, pura e simplesmente, dizer nada. Último exemplo: “Todas as liberdades que tenham a ver com a diversidade, contam com o meu apoio”. Mais uma coisa tão vaga e sem cláusulas que é um perigo público. Bom, esperemos que um canibal não lhe apareça em casa à hora do jantar. Resumindo, a inequivocidade é miraculosamente gerada pela indefinição: “É muito fácil saber onde estou, porque estarei sempre do lado da liberdade”. Dito de forma tão geral, significa: em lado nenhum.

Sampaio da Nóvoa sublinha por duas vezes na entrevista que fica espantado por as pessoas não o compreenderem (e cita o pai: “Não acertam uma!”). Imagino que este tipo de críticas lhe apareça como perfeitamente incompreensível e deslocado. Pela minha parte, também imagino – até com muito mais probabilidade de acertar, permito-me acrescentar – que Sampaio da Nóvoa seja uma pessoa simpaticíssima e muito competente nos seus prévios afazeres profissionais (não acredito, no entanto, que seja tão radicalmente incapaz de mentir como pretende, porque seria, num adulto, inumano – é provavelmente desatenção sua). Mas, como Presidente, seria – e isto já não é imaginação, é absolutíssima certeza – uma desgraça trágica. Uma desgraça de que não precisamos, e que ele, se vir bem, também não precisa. O que não significa forçosamente que se deva dedicar à poesia.