Uma boa história de vingança dá sempre suculento material literário. A personagem mais requintadamente vingativa de sempre é, sem discussão, o conde de Monte Cristo de Dumas (que, não há vergonha em confessar estas coisas, foi uma das grandes paixões da minha adolescência, afinal nenhuma adolescente saudável de doze anos resiste ao torturado prisioneiro inocente do Castelo de If). Logo a seguir candidata-se Heathcliff, em O Monte dos Vendavais. E, claro, a vingança é um filão interminável para a literatura policial – género que não dispenso. Na versão lusa, tivemos há poucos anos O Mar em Casablanca, de Francisco José Viegas, oferecendo-nos uma sangrenta vingança por causa de uns ainda mais sanguinários eventos em Angola trinta anos antes, em contextos inspirados naqueles em que Sita Valles foi torturada, violada e executada por comunistas da fação contrária.

À conta de tantos livres – e filmes – corremos o risco (ou, pelo menos, eu, que sou literariamente impressionável, corro) de ficarmos parciais com as mentes vingativas. Mas no caso das vinganças, como em tantos outros, a tecnologia destrui-nos o romantismo.

É que tem havido um grande número de pessoas encantadoras – cujo ressentimento e falta de escrúpulos é certamente apenas um pormenor – que partilha na internet fotografias ou vídeos de conteúdo sexual quando uma relação amorosa (ou qualquer coisa vagamente relacionada) termina. Do ex, claro.

Vários estados dos Estados Unidos e Austrália têm leis que punem especificamente esta ‘vingança pornográfica’. Israel também. Inglaterra e País de Gales aprovaram há poucos dias legislação que pune com prisão até dois anos quem se dedicar à edificante atividade. Nos Estados Unidos, onde a eventualidade das relações amorosas correrem mal são sempre desapaixonadamente previstas, o tema revenge porn já consta nos contratos pré-nupciais, numa espécie de acordo de confidencialidade que os agentes dos serviços secretos assinam.

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Por um lado estas exposições – maioritariamente de mulheres – são primas afastadas (ou nem por isso) daqueles ataques mais violentos que as mulheres sofrem, às mãos de maridos e familiares noutras partes do mundo, quando mostram a ousadia de serem donas dos seus narizes – ou, na versão Ocidente, terem vida sexual. Ácido vertido na cara para permanentemente desfigurar as senhoras insubmissas e assim lhes arruinar a perspetiva de encontrarem novo marido. Ou rega com combustível e fogo a seguir. Ou, como a afegã fotografada para uma famosa capa da Time há anos, corte do nariz. As possibilidades são tantas quantas as imaginações sádicas. O fundo é igual: mostrar que as mulheres não podem abandonar uma relação impunemente.

O outro motivo abarca homens e mulheres de forma igual, numa enternecedora igualdade de géneros: a forma desconcertada e desastrada com que lidamos com a tecnologia. Ressabiados serão ressabiados. Pomos um tablet ou outro dispositivo com acesso à internet nas suas mãos e inevitavelmente a catástrofe segue-se. Nos melhores momentos tornam-se trolls, insultando a eito, ameaçando e argumentando sem sentido. Quando estão aborrecidos e com ego ferido com o fim de uma relação, vão de colocar na internet pormenores embaraçosos e íntimos do ex.

O meu pai, que fez ontem 85 anos (atenção que o senhor estava quase na meia idade quando eu nasci), costuma contar como há pouco mais de quatro décadas comprou a sua primeira máquina calculadora no Japão, geringonça que lhe poupou incontáveis horas de trabalho. E como as suas cartas profissionais para o Extremo Oriente demoravam quinze dias no caminho entre cá a lá. Depois veio o telex e hoje o meu pai pode acompanhar em tempo real as variações do Hang Seng.

E o problema é este: há cabeças pequeninas que, vivendo no mundo digital e imediato, estão apenas equipadas para o estado tecnológico de meados do século XX, quando as ondas de choque eram mais contidas. Visto que não é provável que estas boas almas se queiram infoexcluir voluntariamente (provavelmente vivem convencidas que tal seria uma grande perda para a humanidade e as pessoas correriam para os antidepressivos se lhes notassem a ausência) e como não é possível (nem desejável) fazer com a internet como se faz com as armas de fogo – proibir o seu uso ou, no mínimo, exigir uns dias entre a encomenda e a compra, com verificação de saúde psiquiátrica no entretanto – talvez a solução seja mesmo penal e punitiva, criando um crime específico ou afinando legislação de proteção da privacidade para os danos que estas novas potencialidades tecnológicas permitem.

Talvez seja bom começamos a pensar e a conversar sobre isto. Antes que ocorram muitas respostas à revenge porn como a da jornalista de tv Sloan Sabbith, na série televisiva Newsroom, que partiu o maxilar do ex que divulgou fotos sexuais suas. E a seguir fotografa-se e põe-se também na net.