Jónína Leósdóttir e Jóhanna Sigurðardóttir protagonizam uma história de amor invulgar. Entre 2009 e 2013, Jóhanna Sigurðardóttir foi a primeira mulher a exercer o cargo de primeira-ministra da Islândia e a primeira casada com uma pessoa do mesmo sexo. Ficou conhecida por ter lidado com o país em plena crise financeira e deu nas vistas pela pessoa que escolheu ter do seu lado. Jónína estreou, assim, o papel de primeira-dama lésbica, como é referido na imprensa estrangeira.
A vida privada do casal suscitou, durante muito tempo, a curiosidade dos media. Agora que a ex-PM se retirou da esfera política, a história deixou de ser um tema reservado. Jónína Leósdóttir, que é escritora, resolveu lançar o livro Jóhanna e eu (tradução livre) em dezembro, apenas disponível na versão original. Nele, a ex-jornalista de 60 anos conta como a sociedade islandesa, em tempos de costas voltadas para a homossexualidade, recebeu a união sem preconceitos. Ao Observador, revela ainda como foi bem recebida, em visitas oficiais, enquanto primeira-dama. Curiosamente, destaca um dos países com um regime mais fechado: a China.
A relação entre as duas mulheres começou por ser um segredo, por motivos pessoais e políticos. Evoluiu para união de facto e, já Jóhanna era PM, para casamento. Atualmente, o casamento gay, legalizado justamente durante a governação de Jóhanna, pode ser celebrado nas igrejas luteranas. A adoção por casais do mesmo sexo já é possível, mas ainda há discriminações.
Porquê contar a vossa história agora, no livro Jóhanna e eu?
Quando a Jóhanna era primeira-ministra, órgãos de comunicação de todo o mundo pediam entrevistas sobre a sua vida privada, sendo ela a primeira chefe de Estado assumidamente gay no mundo. Nessa altura, ela estava muito ocupada a lidar com a economia islandesa. No entanto, nós percebemos o interesse das pessoas na nossa história e quisemos partilhá-la com os outros agora que a Jóhanna retirou-se da vida política.
O livro conta uma segunda história, sobre como a sociedade da Islândia se abriu aos homossexuais. O final foi feliz?
Quando eu e a Jóhanna nos conhecemos não havia direitos legais para gays na Islândia e a visibilidade dos homossexuais era, no mínimo, muito limitada. Tudo mudou em 10, 15, anos por causa do trabalho árduo de quem lutou pelos direitos humanos, dentro do Samtokin ‘78 (a associação islandesa de gays e lésbicas) como fora dele. Não se alteraram apenas os direitos legais, mas também a atitude geral da sociedade.
A mudança é possível. Eu e a Jóhanna vivenciámos isso na Islândia nos últimos 30 anos. Primeiro, o nosso amor era um grande segredo e passámos por tempos muito difíceis na nossa vida privada; mais tarde a relação foi assumida e ficou mais descontraída…e acabou no mundo das notícias.
Como conheceu Jóhanna?
A Jóhanna foi eleita deputada em 1978, razão pela qual já a tinha visto nas notícias. Mas só nos conhecemos no outono de 1983, quando fui destacada para um grande comité sobre a igualdade salarial para as mulheres. Tal como descrevo no livro, a nossa relação só começou dois anos depois.
Na altura, ambas eram casadas com homens. Não sabiam que eram homossexuais?
Éramos casadas e com rapazes pequenos [Jónína tem um filho, Gunnar, e Jóhanna tem dois, Sigurdur e David], mas nunca nenhuma de nós tinha vivenciado algo do género. Isso fez com que tudo ficasse mais complicado. Jóhanna estava casada há 15 anos com o marido e eu há 13, desde os meus 18 anos.
Começaram a viver juntas apenas em 2000. Como era a vossa relação na altura e durante quanto tempo foi mantida em segredo?
Por várias razões complicadas, sentimos que tínhamos de manter a relação em segredo. Até o ano de 2000 passámos apenas os fins de semana juntas. A sociedade islandesa era completamente diferente nos primeiros dias do nosso relacionamento. Havia poucos gays assumidos e temíamos que os nossos filhos passassem por dificuldades por ter mães numa união homossexual. E o facto de a Jóhanna ter uma vida política não ajudava.
Em 2009, Jóhanna foi eleita primeira-ministra e em 2010 vocês casaram-se. Ela tornou-se na primeira PM a ter um cônjuge do mesmo sexo. Porquê casar após as eleições?
Iniciámos uma união de facto em 2002, mas mudámo-la para casamento no primeiro dia em que isso foi possível, em 2010, quando o Governo de Jóhanna alterou a legislação na Islândia para que as pessoas do mesmo sexo se pudessem casar.
As nossas vidas mudaram muito em 2009, quando Jóhanna foi eleita a primeira primeira-ministra islandesa. Isto aconteceu depois dos três maiores bancos na Islândia colapsarem e de o país estar a viver uma enorme crise económica. Foi um dos momentos mais difíceis na história da Islândia, pelo que ser chefe do Governo foi um trabalho extremamente difícil.
O Governo de Jóhanna alterou a lei tendo em conta a vida privada desta?
Não, a alteração à lei já estava a ser preparada quando ela se tornou primeira-ministra e estava nas mãos do Ministério da Justiça. A vida privada de Jóhanna não influenciou em nada, mas o seu partido político (Sociais Democratas), como um todo, estava a favor desta mudança.
Teve medo que a decisão de casar pudesse afetar a carreira de Jóhanna? A vossa relação foi bem recebida?
Na altura em que começámos a viver juntas, em 2000, a sociedade islandesa tinha mudado muito, pelo que não vivenciámos muitos preconceitos ou negatividade. Houve algumas tentativas, de políticos, de usar a vida privada de Jóhanna contra ela, mas sem sucesso. A nossa relação não teve um impacto negativo na sua carreira, sobretudo porque a mantivemos em segredo numa altura em que esta poderia ter prejudicado a vida política de Jóhanna.
Em Portugal, o casamento homossexual foi legalizado em 2010; a co-adoção por casais do mesmo sexo foi chumbada. E na Islândia?
Os homossexuais, na Islândia, têm o direito legal de adotar crianças. Muitos casais de lésbicas têm crianças, mas é mais difícil para os homens que são gay. Mas eu sei de um exemplo de dois homens que adotaram uma criança…e outros que têm filhos de relações anteriores.
O luteranismo é a religião oficial da Islândia, como é que este interfere na vossa vida privada?
Nós temos uma igreja nacional que, durante muito tempo, teve dificuldades em aceitar a ideia do casamento gay. A igreja era contra o uso da palavra “casamento” para definir a união entre duas pessoas do mesmo sexo. Isso deixou-me muito triste, porque penso que é extremamente importante que as relações entre pessoas do mesmo sexo não estejam numa categoria diferente…como se, de alguma forma, fossem de segunda categoria. Desde que a lei mudou em 2010, casais do mesmo sexo podem casar-se na igreja na Islândia. Mas penso que existem clérigos mais velhos que não querem realizar tais cerimónias.
Existe algum protocolo para a primeira-dama na Islândia?
Não, o cônjuge do Primeiro-Ministro não tem qualquer staff ou deveres especiais, à exceção de acompanhar o PM em algumas funções públicas. Como sou escritora, basicamente continuo com o meu trabalho enquanto a Jóhanna é primeira-ministra.
Alguma vez se sentiu discriminada enquanto primeira-dama homossexual?
Não, na Islândia as pessoas são muito descontraídas no que toca a homossexualidade e, a cada ano, durante a Marcha do Orgulho Gay no centro de Reiquejavique, aparecem cerca de 60 mil pessoas para darem apoio. É bastante para uma nação que tem uma população total de apenas 320 mil.
Houve algum momento embaraçoso no decorrer de eventos oficiais?
Houve um pequeno incidente, mas sem importância, quando fizemos uma visita oficial ao nosso vizinho, às Ilhas Faroé [território dependente da Dinamarca]. Um deputado não quis comparecer no jantar oficial por considerar que as relações entre o mesmo sexo são pecado. Mas todas as pessoas com quem nos cruzámos eram particularmente acolhedoras.
Também fomos, noutra visita oficial, a Pequim e, muito embora fossemos o primeiro casal do mesmo sexo que o PM chinês alguma vez recebeu, tudo correu bem e foram todos respeitadores.
Ficou surpreendida com a reação do PM chinês?
Não, não fiquei. Em eventos formais ou oficiais todos tendem a ser muito educados e nunca esperei algo em contrário, mesmo sendo nós um casal pouco convencional. Ainda assim, desde o início da visita à China, Jóhanna deixou claro que era muito importante que eu fosse tratada exatamente da mesma forma que um cônjuge heterossexual do PM, numa visita semelhante.
Houve alguma mudança de protocolo tendo em conta que a Jónína era (e é) mulher da Jóhanna e não marido?
Não de todo. O protocolo islandês é muito moderno. E, claro, todos os líderes estrangeiros que conhecemos foram extremamente educados.
Homossexuais e política: o que está prestes a mudar no mundo? Existe alguma diferença entre os países nórdicos e aqueles do sul?
Os países nórdicos estão na vanguarda da igualdade dos direitos, também no que toca a homossexuais. Mas há outros países que instalaram leis com o mesmo objetivo, razão pela qual não considero que seja somente uma divisão entre norte e sul.
Infelizmente, há pessoas em muitos países que não são livres para amar outras do mesmo sexo. Há quem possa ser preso ou temer pela própria vida apenas por se apaixonar pela pessoa “errada”. Sentimo-nos tristes e, sinceramente, esperamos que a nossa história possa dar alguma inspiração e esperança a quem vive em sociedades onde a homossexualidade não está, atualmente, na agenda política.
Ter sentimentos por alguém do mesmo sexo não é uma opção de vida, tal como demonstra a minha história com a Jóhanna. A paixão não se pode escolher. E esta, ao início, não foi bem recebida. Mas não podemos lutar contra o amor.
A obra foi publicada na Islândia antes do Natal. Quando vai estar disponível em inglês e em português?
Neste momento, está a ser discutida a publicação noutros países. Por enquanto, não há acordo com qualquer empresa portuguesa e, infelizmente, o livro ainda não está disponível em inglês .