As expectativas eram altas quando, naquele 27 de março de 2012, 150 elementos da Polícia Judiciária (PJ) e da Autoridade Tributária (AT) partiram para o terreno e fizeram mais de 30 buscas a farmácias e a residências de todo o País. Os últimos meses tinham sido de investigação minuciosa a um esquema de burla a fornecedores, bancos e Estado avaliada em quase 100 milhões de euros. Mas, dois anos e meio depois, só quatro dos oito suspeitos são arguidos no processo. Não há detidos, o Ministério Público, ainda, não acusou ninguém e o processo corre o risco de prescrever já em dezembro.
O problema para os investigadores está na complexidade do esquema usado, um sistema piramidal. No topo, os dois principais suspeitos: Nuno Guerreiro, empresário do setor das farmácias, e Bruno Lourenço, igualmente empresário farmacêutico, fundador do Grupo Progresso Saúde. Ambos negaram relações comerciais, mas os investigadores acreditam que eles são os ‘cabecilhas’ desta fraude. E a hipótese de existir alguém acima deles não está posta de parte.
Fontes próximas do processo revelaram ao Observador como funcionava o esquema. Tudo começava com a aquisição de farmácias com recurso a um crédito bancário. Como a lei impede mais do que quatro farmácias por dono, os suspeitos ocultavam a sua verdadeira identidade de compradores e usavam os chamados ‘homens de mão’, adquirindo-as em nome destes. Normalmente eram pessoas com quem tinham já negócios, que aceitavam constituir empresa para comprar a farmácia com a promessa de que mesma integraria um grupo de farmácias. E havia vantagens: as compras eram feitas em conjunto o que permitia maior poder negocial junto dos fornecedores, com a consequente melhoria das margens de comercialização.
Noutros casos, estas empresas podiam também assumir a gestão de estabelecimentos farmacêuticos em dificuldades financeiras e cujos proprietários tinham acumulado dívidas consideráveis. O negócio também era apetecível para estes: iam para casa com uma renda mensal ‘simpática’ ou podiam, até, manter-se ao balcão, com a promessa de que os novos gestores assumiam o enorme défice.
Onde se lucrava com o esquema
Com 20 a 30 farmácias num só grupo, negociar os preços com os fornecedores de medicamentos tornava-se mais fácil, uma vez que as encomendas eram feitas globalmente, como se de uma central de compras se tratasse: perante as quantidades de medicamentos comprados, os laboratórios baixavam os preços. O mesmo acontecia com os armazéns de medicamentos, que obtinham maiores ‘margens’ de lucro. Os prazos de pagamento também se dilatavam, até porque enquanto o esquema funcionou cada encomenda global era feita em nome de uma farmácia (para abastecer todas elas) podendo prolongar o tempo das dívidas sem afetar os stocks – ainda que o esquema tenha provocado carência de medicamentos no mercado. Os bancos, por sua vez, emprestavam olhando para a dimensão do negócio.
Os armazéns passaram a desempenhar também um papel fulcral. Através deles, faziam-se a maioria dos negócios. Antes e ainda agora. Cada grupo de farmácias (em Portugal haverá 10 grandes grupos e 30 mais pequenos) detém já um armazém através do qual passam todas as compras de medicamentos. Funciona como uma central de compras, com preços e prazos muito mais vantajosos. No estratagema investigado, estes armazéns terão sido uma peça essencial. Eram também adquiridos aos seus antigos proprietários, que ficavam como sócios satisfeitos com a maior perspetiva de negócio. Todos ganhavam, uma vez que as margens de lucro conseguidas com a baixa de preços por parte dos laboratórios eram bem maiores. E podiam depois passar para algo ainda mais lucrativo: a exportação.
As grandes encomendas das farmácias, em volume superior ao das suas próprias necessidades, passavam a ser feitas aos armazenistas e laboratórios, através destes armazéns. O sistema em si não é ilegal, mas as autoridades suspeitam que fossem usadas receitas falsas. Por outro lado, houve situações em que faltaram medicamentos nas farmácias, com prejuízo para o utente.
Em seguida, os armazéns enviavam para as farmácias uma parte da mercadoria, ficando com a restante na sua posse. Esta era depois revendida para o estrangeiro, com altas margens de lucro. E ao contrário do que se possa pensar, o grande mercado não seria o africano, mas sim o europeu. O Observador apurou que há casos em que um medicamento é comprado na Alemanha e depois reentra no circuito alemão dez vezes mais caro. E todos lucram.
Na investigação em causa, os cabecilhas terão percebido também que o negócio podia passar por aí. Associavam-se aos donos desses armazéns, que usavam para comprar os medicamentos para as suas farmácias, e deixavam as ‘sobras’ para o negócio rentável da exportação que os primeiros proprietários geriam com enormes proveitos. Com esta perspetiva em mãos, a maioria aceitava depois participar no referido esquema de aquisição de farmácias.
Um esquema que os suspeitos no processo em causa nunca admitiram. Negaram desde o início deter mais farmácias que o permitido por lei, alegando que o que se passou foi que as farmácias decidiram associar-se entre si, criando uma marca, para poderem fazer estas compras grossistas sob o mesmo chapéu. Exemplo disso é o Grupo Progresso. Na altura os arguidos disseram tratar-se de uma estrutura informal. Mas a investigação aponta no sentido contrário. Diz que os suspeitos detinham grupos de 20 farmácias, cuja propriedade estava em nome das referidas sociedades. E que era assim que faziam as compras milionárias de medicamentos, arrecadando a margem de lucro de venda ao público, bem com a comparticipação do Estado a muitos desses remédios.
Bens de luxo apreendidos
O esquema estoirou quando alguns dos intervenientes que entraram no negócio perceberam que as dívidas em seu nome não estavam a ser pagas. E até estavam a aumentar: dívidas em medicamentos, ao banco e ao Estado. As queixas sucederam-se levando à investigação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ em colaboração com a Autoridade Tributária que terão detetado que as verbas recebidas eram desviadas para usufruto pessoal.
No processo por fraude fiscal, associação criminosa, falsificação de documentos e burla levado a cabo há mais de dois anos foram apreendidos imóveis de luxo avaliados em mais de 20 milhões de euros, um iate de 1,5 milhões, 14 automóveis de gama alta (Mercedes, Lamborghinis, Porsches, quadros valiosos e joias caras). Mas do rasto do restante dinheiro nada se sabe.
Os ‘visados’ pela justiça são agora os referidos ‘empresários’ que deram o nome que figura nas empresas que compraram ou ficaram a gerir as farmácias devedoras, fazendo uma declaração de dívida aos verdadeiros donos. À medida que as dívidas se acumulavam, essas empresas eram extintas, com todas as responsabilidades a cair em cima dos seus detentores formais, ou seja, os referidos ‘empresários’.
Fonte ligada ao processo revela que a maioria nunca teve ideia dos negócios que eram feitos em seu nome, limitando-se a assinar alguns papéis a troco de mais um negócio ou de forma a não perder as ‘vantagens’ da inserção das ‘suas’ empresas no grupo. A maioria não movimentava as contas bancárias abertas em nome da empresa a que tinham dado o nome, já que todos os pagamentos eram feitos com recurso à utilização de procurações pelo outro titular.
As outras ‘vítimas’ foram os donos de farmácias que cederam o contrato de exploração ou gestão, e cuja maioria está em insolvência. Em vez da promessa de que as dívidas acumuladas seriam saldadas, a verdade é que essas dívidas se multiplicaram, tornando-se em alguns casos cinco ou seis vezes superiores, sendo eles os responsáveis por elas, pois as empresas ‘fantasma’ declararam falência e foram extintas, sem se perceber quem de facto as detinha. Além das dívidas, os donos perderam todo o stock de medicamentos. Nalguns casos, perderam computadores e e mobiliário. Ficaram com as farmácias vazias.
Segundo o Código do Processo Penal, uma investigação pode prolongar-se por 18 meses, no máximo, devido à sua complexidade. Neste caso, passaram já 32 meses, mas a contagem do processo tem sido suspensa graças a várias diligências processuais levadas a cabo. Ainda assim, o processo pode prescrever já em dezembro, deitando por terra tudo o que já foi feito.
Contactada pelo Observador, fonte do Ministério Público afirmou existirem dois inquéritos a decorrer no âmbito desta operação. Mas ainda não passaram disso mesmo, de investigações. Ninguém foi formalmente acusado. E os prazos ainda não prescreveram porque vão sendo feitas pequenas diligências.
Chuva de processos
Paralelamente a este processo, outras queixas foram feitas ao Ministério Público vindas dos bancos onde foram contraídos os créditos. Entre eles está o BES e o BCP. As dívidas serão superiores a 50 milhões. Há também queixas de fornecedores, armazéns e laboratórios de medicamentos. A Udifar, por exemplo, terá sido lesada em mais de 16 milhões, e a Alliance Healthcare, em 18 milhões. Nunca pararam de fornecer, embora impondo agora o pagamento prévio, de forma a não ficarem sem clientes importantes num mercado que tem estado a perder margem de lucro, perante as leis que fizeram baixar o preço dos medicamentos e impuseram a venda de mais genéricos.
Nenhum dos lesados conseguiu recuperar qualquer montante.