A Assembleia da República debate hoje projetos de lei do BE que pretendem tornar a violação um crime público, dispensando a apresentação de queixa, e passar a considerar como violação ou coação a falta de consentimento na relação sexual.

O projeto de lei, que visa alterar “a previsão legal dos crimes de violação e coação sexual no Código Penal”, já tinha sido aprovado em março no plenário. Na altura, só o Bloco e os Verdes votaram a favor, tendo os restantes partidos ficado pela abstenção, mas viabilizando a passagem do documento para a discussão na especialidade. Cerca de nove meses depois, a deputada bloquista promotora do projeto de lei, Cecília Honório, afirma que a intenção legislativa foi “rejeitada na comissão parlamentar” por as restantes bancadas terem considerado a votação “extemporânea”.

O tema regressa por isso ao plenário para debate (esta quarta-feira) e votação final (sexta-feira), mas sob a forma de dois diplomas, tendo sido autonomizada a proposta para tornar a violação um crime público. “As condições são novas e diferentes”, disse a deputada em declarações aos jornalistas mostrando-se confiante de que desta vez a alteração ao código penal tem “todas as condições para ser aprovada”.

Em causa está o facto de a atual legislação apenas condenar o ato de violação quando o agressor recorre à violência física e a vítima resiste. Para os bloquistas, no entanto, este quadro legal deve ser atualizado no sentido de incluir o pressuposto do não consentimento para definir à partida se se trata de crime de violação.

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“É no não consentimento que radica a violência do ato e a natureza do crime. Neste sentido, a existência de violência ou ameaça grave não devem ser meios típicos de constrangimento, mas circunstâncias agravantes da pena”, lê-se no projeto de lei.

A proposta de tornar a violação um crime público, isto é, que não precisa de queixa para ser investigado, como acontece nos casos da violência doméstica, também estará a votos esta quarta-feira em plenário. Mas esta encontra mais oposição nas várias bancadas, uma vez que muitos consideram que isso pode levar a uma dupla vitimação das mulheres que não desencadearam o processo.

O BE sublinha as posições favoráveis à alteração da natureza deste crime da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) e da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e rejeita o “argumento da dupla vitimação” invocado durante o debate que se gerou sobre o tema.

A Associação de Mulheres Juristas manifestou-se “abertamente favorável à atribuição de natureza pública ao crime de violação”, considerando que “só deste modo” a lei consegue assegurar “de forma eficaz” a proteção das mulheres.

Em março, com exceção de “Os Verdes”, a linha de argumentação dos partidos já tinha sido no sentido de considerar “o não consentimento” de prova difícil e de sublinhar que a transformação da violação num crime público pode levar a uma dupla vitimização das mulheres que não iniciaram o processo.

No mesmo sentido vão os pareceres do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), do Conselho Superior da Magistratura (CSM) e da Procuradoria Geral da República (PGR) recebidos durante a discussão dos projetos na comissão. O CSMP considera que o crime de violação deve manter a sua natureza semipública e sustenta que “importa equacionar se essa alteração não terá o efeito pernicioso de obstar à satisfação da proteção dos direitos fundamentais da vítima”.

O CSM remete, por seu lado, para um parecer já emitido sobre projeto de lei sobre o mesmo assunto, apresentado pelo BE na sessão legislativa anterior e que foi chumbado, em que considerava que a alteração da natureza do crime “não salvaguarda os interesses da vítima, não se tutelando de forma alguma, a vontade da mesma em não pretender desencadear a ação penal”.

As duas estruturas, no entanto, apreciaram de forma positiva as alterações propostas sobre o facto de o “não consentimento” ser considerado um ato de violência. Para a PGR, tendo em conta as “consequências nefastas que poderão advir para a vítima, decorrentes de um processo de vitimização acrescida e desproporcional”, a opção deverá ser pela “criação de um regime híbrido”, que permita ao Ministério Público ponderar, caso a caso, a instauração ou prosseguimento da ação penal, “tendo sempre presente os interesses especiais da vítima”.

As autoridades policiais registaram no ano passado 344 participações por violação face às 375 registadas no ano anterior.