Ainda não era nada. Ninguém. Ouvia-se que um miúdo, sem barba na cara, de pele branca, perna longa e camisola sempre presa aos calções, estava a aparecer entre os mais velhos. Limitava-se a aproveitar as sobras: jogara já à direita e à esquerda da defesa, servira de extremo e, só de vez em quando, o deixavam estar no centro, no meio campo, onde se comanda um jogo com as chuteiras. “Estou só à espera de mais uma lesão, lá na frente, e lá estarei, a marcar golos”, disse, tão a sério como a brincar, quando, aos 19 anos, os jornais já queriam saber mais sobre o novato a quem a seleção inglesa já piscava o olho.
Porque, bom ou não, Steven Gerrard era novo e, em fevereiro de 2000, acabara de cruzar a fronteira dos 30 jogos feitos na Premier League. Ia na segunda temporada na equipa do Liverpool — e, lá está, ainda pouco, ou quase nada, fizera. Por enquanto. “Não estou surpreendido por estar onde estou, pois sempre me disseram que tinha capacidade. E acredito que posso continuar e conseguir mais. Estou pronto para a Inglaterra”, confessou, na altura. Recheado de confiança ou com uma bola de cristal escondida em casa, Gerrard tinha razão. E provou-o.
Cinco anos volvidos, e com uma braçadeira, a de capitão, já a apertar-lhe um dos braços, foi ele o primeiro ateu, a 25 de maio de 2005, em Istambul, a não acreditar que a final da Liga dos Campeões estava perdida antes de terminar. Foi Gerrard, no arranque da segunda parte, a pular e a cabecear, quase fora da área, a bola que deu o primeiro de três golos com que o Liverpool recuperaria do 3-0 sofrido antes do intervalo, frente ao Milan de Rui Costa. Um prolongamento e uns penáltis depois, foi ele a levantar o caneco.
Foi ele, em 2006, quando já tudo parecia perdido, que puxou atrás o pé direito e, a uns bons 30 metros da baliza, disparou um míssil que empatou a final da Taça de Inglaterra contra o West Ham e a resgatou até aos penáltis, onde, de novo, prevaleceu o Liverpool.
Foi também ele que, em 2001, marcou um dos cinco golos da louca conquista da Taça UEFA, frente ao Alavés, ou que, aos 87 minutos do último jogo da fase de grupos da Champions, soltou outra bomba, na cara do Olympiakos, para empurrar o Liverpool rumo aos oitavos de final (precisavam de vencer por dois golos de diferença para o conseguir). “É um jogador para os grandes momentos, como fazem os jogadores especiais”, resumiu Jamie Carragher, seu companheiro de Gerrard durante anos e anos, no Liverpool.
O “seu” Liverpool. O clube que, em miúdo, aprendeu a adorar num dos bairros pobres da cidade, e com quem, nos relvados, passou os últimos 17 anos. Hoje está com 34. Sábio, icónico e lendário como poucos, muito poucos. E, a partir do verão, também passará a ser saudoso — porque Steven Gerrard vai abandonar o Liverpool. O adeus chegou esta sexta-feira, cerca de cinco meses antes de o inglês se despedir de vez. “Foi a decisão mais difícil da minha vida, que me agonizou durante os últimos meses”, admitiu, num anúncio que o Liverpool publicou no site oficial. Um dia, diz, regressará para “ajudar” os reds, em “qualquer capacidade que melhor ajude o clube”.
Nos entretantos, garantiu, nunca estará de frente, na outra metade de um relvado onde o clube de uma vida tenha a jogar. “Não posso dizer onde vou continuar a jogar. Mas será algures onde não tenha de competir contra o Liverpool — é algo que nunca conseguiria contemplar”, escreveu, senhor de palavras que levam os adeptos a tê-lo nessa consideração.
De senhor e de lenda. Uma que, em 17 temporadas, contadas 695 partidas e 180 golos com a mesma camisola vestida. Durante a “era-Gerrard”, aliás (desde 1998), apenas Frank Lampard e Gareth Barry somaram mais jogos na Premier League, competição que, em Inglaterra, é a única a nunca ter dado um caneco para Steven Gerrard erguer.
[Metro] The best football vines of 2014:
Steven Gerrard’s slip against Chelsea:https://t.co/xwkeQqELFj— Ангэл Гэрси (@Ghersi_Angel) December 31, 2014
E difícil é que seja esta a temporada em que o fará. O Liverpool está a 17 pontos do topo do campeonato. Da liderança de José Mourinho e do Chelsea que, na época passada, lhe cortou as pernas na corrida que deixou Gerrard muito perto de se poder apelidar de campeão inglês. Em abril do ano passado, o farol de uma equipa que, às tantas, até admitiu que, em parte, também corria para dar o título ao seu capitão, escorregou. “Todas as pessoas deste planeta escorregam em alguma altura das suas vidas, seja numas escadas, no chão ou em qualquer coisa”, diria o inglês, mais tarde, ao The Guardian, ao falar dos pés que não se prenderam na relva e, frente ao Chelsea, deram a bola a Demba Ba, que marcou o único golo que derrotou o Liverpool.
Foi logo ele, o capitão, a já lenda que tantas vezes salvara o clube, que o azar e a relva fizeram escorregar. Aí começaram “os piores três meses” da vida de Gerrard, como admitiu. A Premier League fugiu-lhe, a auto-culpa não o largou e, no Brasil, capitaneou uma seleção que não prolongou a estadia no Mundial além da fase de grupos. “Foi injusto e cruel”, chegou a dizer. A desilusão na Copa, no verão, fê-lo anunciar o primeiro adeus — despediu-se da seleção, deixando para trás 114 jogos, 21 golos e seis torneios oficiais disputados (três Mundiais, de 2006, 2010 e 2014, e três Europeus, em 2000, 2004 e 2012) que, caso alguém duvide, provam que, afinal, a miudeza dos 19 anos tinha razão.
Brendan Rodgers on Gerrard: "This is an era where 'legend' is vastly overused, but in his case it actually doesn't do him justice." #LFCicon
— Liverpool FC (@LFC) January 2, 2015
Já no Liverpool, as provas estão em todo o lado. Na Champions, que a conquistou uma vez (2005) e ficou pelo quase noutra (perdeu na final, em 2007) — onde, aliás, a estreia se deu frente ao Boavista de Jaime Pacheco, em setembro de 2001. Nas nove taças que ajudou a levar para o museu do clube (duas Taças de Inglaterra, três Taças da Liga, uma Liga dos Campeões, uma Taça UEFA, uma Super Taça Europeia e outra inglesa). Ou nos 180 golos — o primeiro, já agora, foi este — que marcou, os dois mais recentes de penálti, no último fim de semana. “Numa era na qual o termo ‘lenda’ é usado em demasia, mas que, no seu caso, até nem lhe faz justiça”, defendeu Brendan Rodgers, treinador que, nas últimas duas temporadas, lhe tem dado ordens.
Ficou em falta a Premier League, o campeonato que, com oito anos, em maio de 1990, a versão criança de Gerrard viu o Liverpool vencer, na bancada de Anfield Road. Estádio do clube que se habitou à ideia de ter num médio magrinho um capitão quase incansável, a correr sem parar e a ter no pé direito uma fábrica de remates potentes e passes que só raramente não acertam no destino.
O mesmo que, por vezes, guardava a classe no bolso e sprintava para roubar bolas, entrar rasteiro e deslizar sobre a relva. “Fui posto na Terra para entrar de rompante em tackles. Para muitos profissionais, as entradas rasteiras são uma técnica. Para mim são uma descarga de adrenalina”, chegou a confessar o jogador que, aos olhos de Alex Ferguson, o escocês que passou 27 anos a treinar o Manchester United, rival do Liverpool, não era “um jogador de top, top”.
É uma opinião. Uma de muitas sobre um jogador que, em 2005 e 2006, virou as costas aos milhões que o Chelsea tinha para o contratar, enquanto via adeptos a queimarem uma camisola sua à medida que viam os rumores na imprensa. “Não me podia importar menos”, disse, num documentário que o perseguiu, o jogador que, da estreia pelo Liverpool, se recorda de um cruzamento que foi parar à bancada e, da primeira vez a titular, entrou “em pânico”. Porquê? Disseram-lhe para marcar David Ginola, francês do Tottenham que, nessa época, seria nomeado o melhor jogador da Premier League e “gozou” com Gerrard, fugindo-lhe com fintas, arrancadas e desmarcações.
Mas gozar é coisa que nenhum adepto do Liverpool fará se a conversa for sobre o capitão. Até 24 de maio, dia da última jornada da Premier League, pelo menos — porque os reds ainda podem cavalgar até ao final da Taça da Liga inglesa –, Steven Gerrard ainda andará a correr pelo clube no qual sempre sonhou estar. “Até ao último pontapé [na bola] da época, estarei tão focado na equipa como sempre estive”, garantiu quem, mais do que fiel, deixará em breve de ser exemplo de coisa rara: futebolista de um clube só, como ainda o é Francesco Totti, na Roma, ou como o foi Paolo Maldini, no Milan. A coisa soa a despedida. Mas, como Gerrard sublinhou, será, a partir do verão, um see you later. Até já.