O Banco Central Europeu (BCE) prepara-se, tudo indica, para anunciar um programa de estímulo monetário (quantitative easing, ou QE) através da compra de dívida pública. Esta perspetiva de injeção de liquidez, a confirmar esta quinta-feira, já tem sido antecipada pelos mercados, com os juros da dívida dos países da zona euro a caírem para mínimos históricos e a moeda única a descer face ao dólar para valores mais baixos do que quando foi lançada. É a bazuca de Draghi para estimular a inflação – que está cada vez mais longe do objetivo do BCE – e para estimular o crédito na zona euro, mas acarreta riscos para os quais várias vozes estão a alertar. Conheça os seus argumentos.

QE soberano pode parar reformas?

Se Mario Draghi anunciar esta quinta-feira um programa de QE com compra de dívida soberana, certamente não será com a bênção do banco central alemão, que há muito alerta para os riscos associados a esta política. “Estas compras podem criar novos incentivos para aumentar o endividamento, além de poder agravar a fadiga que existe em alguns países em relação às reformas“, afirmou Jens Weidmann, governador do banco central alemão (Bundesbank) numa entrevista ao jornal Handeslblatt em novembro.

Na visão de Weidmann, na eventualidade de o BCE intervir no mercado de dívida pública como comprador isso irá criar uma distorção dos preços e das taxas de juro implícitas. Ou seja, as taxas de juro irão atingir níveis mais baixos do que aconteceria caso o BCE não interviesse no mercado. Aí, Jens Weidmann e outros opositores do QE soberano receiam que os governos acreditem que sejam quais forem as políticas que seguirem isso não afetará o nível de custos de financiamento no mercado. O que, na lógica do responsável, arriscaria fazer regressar as tensões na zona euro um dia que a política monetária do BCE viesse a mudar. “A crise do euro mostrou bem o que acontece quando o princípio da responsabilidade individual nacional é violado ao longo de um período de tempo alargado”, alertou Weidmann.

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Medida respeita o artigo 123º?

Mas o governador do Bundesbank não se limita a dizer que este programa pode gerar riscos morais (moral hazard) na política europeia. “Além de criar um moral hazard significativo, é também uma medida questionável do ponto de vista legal“, afirmou Weidmann na mesma entrevista. Aqui, o responsável está a defender que um plano de compra de dívida pública pode equivaler a financiamento monetário, (isto é, o banco central a financiar défices públicos) algo que é claramente proibido pelo artigo 123º do Tratado Europeu:

“É proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais dos Estados-Membros, adiante designados por «bancos centrais nacionais», em benefício de instituições, órgãos ou organismos da União, governos centrais, autoridades regionais, locais, ou outras autoridades públicas, outros organismos do setor público ou empresas públicas dos Estados-Membros, bem como a compra direta de títulos de dívida a essas entidades, pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais.” (artigo 123.º)

Do outro lado está a obrigação legal do BCE de manter a taxa de inflação “perto, mas abaixo, de 2% no médio prazo”, um objetivo do qual a zona euro se afasta cada vez mais. A recente deliberação do Tribunal Europeu de Justiça sobre a validade do outro programa do BCE, o OMT, deu algumas pistas sobre esta matéria. Na análise do advogado-geral desta instituição, o OMT não viola “em princípio” as regras europeias. O advogado defendeu também que a política monetária deve ser deixada à “experiência” do BCE, que como qualquer outro banco central mundial tem a compra de dívida pública como um dos instrumentos possíveis para cumprir o mandato.

É mesmo necessário um plano deste género?

Outro argumento de quem está contra o lançamento deste programa é que este, pura e simplesmente, não é necessário. Mais importante para o BCE do que a inflação ter descido para 0,2% em dezembro, segundo o Eurostat, é o facto de os técnicos do banco central não preverem uma aceleração da taxa nos próximos anos. Segundo as previsões divulgadas no final do ano passado, a inflação será de 1% em 2015 e de 1,4% em 2016. Só num prazo mais alargado, a cinco anos, a inflação se aproximará do objetivo, em 1,8%, segundo estas previsões.

Mario Draghi tem repetido, todos os meses, que “pendem para o lado negativo” os riscos tanto para a inflação como para o crescimento, pelo que se solidificou nos mercados a ideia de que o BCE irá avançar para um plano de compra de dívida pública. Mas, dentro do próprio Conselho de Governadores do BCE, Mario Draghi ouve frequentemente Jens Weidmann e outros governadores a defenderem que a taxa de inflação baixa é mais transitória do que se acredita, devendo-se à descida recente dos preços do petróleo e ao ajustamento “necessário” levado a cabo nos países do Sul da Europa (que há muito convivem com taxas de inflação negativas).

Os últimos dados e sondagens ao mercado de crédito têm traçado um cenário de recuperação lenta mas consistente nos últimos meses, o que pode dar força a quem acha que não é necessário enveredar por um programa controverso como este, mas não se pode excluir que alguma desta melhoria se deva à expectativa de que o BCE irá, mesmo, avançar. O que está a refletir-se, por exemplo, na descida do euro (boa notícia para as exportadoras) face às outras divisas e que poderá, assim, inverter-se caso os estímulos adicionais não se confirmem.

E pior: além de ser arriscado, não irá “ajudar em nada”

Finalmente, um dos argumentos de quem está contra o programa é que este pode contribuir para criar bolhas especulativas perigosas. Não só porque, como alerta Weidmann, a intervenção do BCE pode contribuir para baixar artificialmente as taxas de juro mas também porque pode empurrar os investidores para ativos demasiado arriscados, já que só aí conseguem obter rendibilidades maiores. Essa é uma crítica feita há vários anos ao programa QE nos EUA.

Além disso, alguns economistas alertam para os efeitos limitados que o programa poderá ter, ou seja, que pode ter mais custos (riscos) do que benefícios. “Por si só, o programa QE terá um impacto limitado”. “Produzirá um efeito através das exportações e da desvalorização da divisa, mas não tanto através do efeito-riqueza ou do ponto de vista do investimento/consumo ou, ainda, da expansão do crédito”, afirmou Alberto Gallo, economista do Royal Bank of Scotland. Esta é, também, a visão de um dos economistas que já falou no âmbito do Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça. Citado nesta quarta-feira pelo The TelegraphWilliam White, antigo economista-chefe do Bank of International Settlements (BIS), o banco central dos bancos centrais, disse que “QE não vai ajudar em nada. Na Europa há uma dependência muito maior do que nos EUA em relação às pequenas e médias empresas (PME) e essas vão buscar financiamento aos bancos, não ao mercado”.

Além de acreditar que não irá resultar, William White afirma, também, que este é mais um reflexo de uma situação perigosa a nível global, já que vários outros bancos centrais têm vindo, também, a intervir nos mercados de dívida e de câmbios. “Estamos a assistir a uma verdadeira guerra cambial, toda a gente está envolvida nela e não faço ideia onde isto pode terminar“. White foi um dos economistas que com maior exatidão previram a crise financeira iniciada com o colapso do Lehman Brothers e, em Davos, afirmou que “estamos a tentar agarrar um tigre pela cauda” e que “vivemos num mundo que está, perigosamente, desprovido de âncoras”.