Foi uma tempestade perfeita. Estávamos a 18 de Novembro de 1975. Os revolucionários sentiam-se vitoriosos: era a primeira vez que a Assembleia Constituinte se reunia depois de os trabalhadores da construção civil terem mostrado a sua força ao conseguirem cercar durante 36 horas o Palácio de São Bento. Os moderados sentiam-se acossados: os deputados do PS, do PPD e do CDS tinham acabado de regressar do Porto, onde se haviam refugiado com receio de que estivesse iminente um golpe de Estado que proclamasse a “comuna de Lisboa”.

Faltavam apenas oito dias para o fim do processo revolucionário, a 25 de Novembro – mas, na altura, ninguém sabia disso. Se alguém dissesse que o país estava a oito dias de se tornar uma ditadura comunista, toda a gente acreditaria.

Por tudo isto, a Assembleia estava em sobressalto. Marcelo Rebelo de Sousa escreveria anos mais tarde que aquela foi “a mais agitada de todas as sessões”, com sucessivas peripécias a tornarem “quase insuportável a normal continuação” dos trabalhos.

Começaram os comunistas. Octávio Pato defendeu os operários que impuseram um cerco à Constituinte e elogiou os participantes numa enorme manifestação realizada dois dias antes contra a “reacção”. Constantemente interrompido pelos adversários, perdeu a cabeça duas vezes. Primeiro, respondeu à “agitação na sala”:

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“Não gostas, pois não, pá? Não gostas? Tu lá sabes de que lado estás, pá!”

Depois, confrontou as “vozes de protesto”:

“Que é? Que é?”

No fim do discurso do deputado do PCP, levantou-se um socialista. Sottomayor Cardia explicou a ida para o Norte dos elementos do PS: “Simbolicamente, o meu partido quis significar que se dispõe a considerar, como último recurso, a possibilidade de transferência dos legítimos órgãos de soberania democrática para outro ponto do território nacional (…)”. O comunista Manuel Gusmão interrompeu-o: “Isso não é sedição?”

Pouco incomodados com a pergunta, os socialistas apertaram mais um pouco o parafuso da resistência. O deputado José Luís Nunes apresentou uma declaração na qual o partido exigia ao Presidente da República “a garantia solene de que usará da sua autoridade sobre as forças armadas para prevenir ou neutralizar qualquer acto de violência” sobre a Constituinte e deixava bem expressa a ameaça de usar “os meios que [o PS] entender necessários” para “cumprir até ao fim o honroso mandato recebido do povo português”.

“Mando evacuar as galerias”

Na altura da votação, rebentou um tumulto entre o hemiciclo e as galerias. Quem estava a exercer as funções de Presidente da Assembleia era o comunista José Magro, que claramente não se sentia à vontade para mandar expulsar os elementos do público, tradicionalmente apoiantes da extrema-esquerda:

“Presidente: Calma. Calma, Srs. Deputados.

Vozes dirigindo-se às galerias, onde um guarda da PSP tentava pôr na rua um assistente: Rua! Fora!

(Apupos. Vozes em coro de protesto pela actuação das autoridades. Manifestações tumultuosas das galerias.)

Presidente: As autoridades fazem o favor de evacuar essa tribuna…

(Manifestações.)

… Fazem favor mandam evacuar essa tribuna. Ou as pessoas que fazem barulho…

(Aplausos. Outras manifestações.)

… Não se justifica toda a tribuna…

(Gera-se o pandemónio na Assembleia.)

… Mas fazem favor de mandar retirar os que fazem barulho.

Vozes em coro, incluindo vozes das galerias: Fascistas! Fascistas!

Presidente: Pede-se silêncio. Mando evacuar as galerias. Silêncio nas galerias…

(Manifestações prolongadas nas galerias e no hemiciclo.)

…Peço calma…

(Continuação das manifestações.)

… Calma!…

(O pandemónio continua. Trocam-se impropérios entre as galerias e o hemiciclo.)

… Meus senhores, vou mandar suspender a sessão. Está suspensa a sessão…

(Manifestações.)

… Está suspensa a sessão!”

Ao fim de quinze minutos foram retomados os trabalhos, já sem Américo Duarte, da UDP, que abandonara a sessão em protesto. Como se vê, gerir tudo isto já era difícil. Mas estava prestes a tornar-se impossível.

O deputado socialista Vasco da Gama Fernandes levantou-se para apresentar um requerimento que se revelaria incendiário. Nele, pedia-se que a Mesa da Assembleia fosse entregar “imediatamente” ao Presidente da República a declaração do PS, que fora entretanto aprovada.

Para o PCP, isto era um problema e uma armadilha. É que quem estava a presidir à Mesa era o comunista José Magro. E quem estava a secretariar a Mesa era outro comunista, Maia Nunes de Almeida. Se este requerimento fosse aprovado, haveria dois deputados do PCP a irem levar ao Palácio de Belém uma declaração que, na prática, criticava o PCP.

Era preciso impedir isso. Só havia uma saída: empatar. A partir daquela altura, os comunistas começaram a tentar gastar tempo, como se fossem um jogador de futebol a simular lesões perto do final de uma partida. Só precisavam de esticar a discussão até às oito da noite, hora-limite para o funcionamento da Assembleia.

Telefonema para Belém

Às 19h15, Vital Moreira solicitou “a suspensão da sessão por meia-hora” para que o grupo de deputados do PCP pudesse fazer um debate interno. Este tipo de pedido fora feito noutras sessões por vários partidos e, portanto, teve de ser concedido. No regresso ao hemiciclo, tanto os comunistas como os elementos do MDP/CDE aproveitaram todas as oportunidades para falar, falar, falar. A dada altura, perfeitamente sintonizado com o relógio, o Presidente José Magro cortou um discurso a meio para, no último minuto, salvar a sua posição:

“Desculpe, Sr. Deputado, vou-lhe interromper a intervenção. Passa das 20 horas e eu vou suspender a sessão para amanhã.

(Burburinho.)

Vozes: Já sabíamos…

Presidente: Está suspensa a sessão.

(Manifestações.)

José Luís Nunes (PS): Sr. Presidente, recurso para o plenário. Eu interponho recurso.

(Manifestações.)

Presidente: Srs. Deputados, interrompi a sessão, que continua amanhã às 15 horas.

(Manifestações.)”

Os dois membros da Mesa que pertenciam ao PCP saíram da sala. Os deputados comunistas e do MDP/CDE seguiram-nos. Junto à porta, perante as “manifestações” dos adversários, Vital Moreira ainda comentou: “Desde quando uma sessão encerrada continua?”

Parecia o fim, mas não era o fim. Como Jorge Miranda descreveria nas suas memórias, uma “figura alta e magra” levantou-se e, mostrando “determinação e firmeza”, percorreu o hemiciclo “a passo estugado” e sentou-se na cadeira do Presidente. Era Vasco da Gama Fernandes, que, invocando o facto de ser vice-Presidente da Assembleia, decidira reclamar a liderança dos trabalhos e determinar a continuação do debate. Anunciou:

“Face ao abandono da Mesa pelo Sr. Presidente José Magro, entendi que era meu dever assumir imediatamente a presidência.”

A partir daquele momento, todas as propostas foram aprovadas por unanimidade. Tendo em conta que os adversários tinham desaparecido e que já era de noite, Vasco da Gama Fernandes optou pela moderação e admitiu a hipótese de o encontro com o Presidente da Republica se fazer só no dia seguinte. Mas os deputados que restavam no hemiciclo não queriam sequer ouvir falar nessa possibilidade. Entre “manifestações” e “apupos” gritaram: “Já!”. Vasco da Gama Fernandes cedeu: “Vou tentar uma chamada telefónica para a Presidência da República.”

O telefonema foi feito e Costa Gomes, que percebera a gravidade do que se passara em São Bento, não hesitou: disse aos deputados que os receberia de imediato no Palácio de Belém. Finalmente, sentiu-se alguma calma na Constituinte – o longo combate tinha acabado.

 

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda