Dizem que Itália é a terra dos jogadores que não olham a cores e jogam onde calhar. Já houve muitos craques de chuteiras calçadas no relvado ou de fato vestido no banco que, por lá, jogaram ou treinaram em clubes rivais. Parece que os italianos têm poucos problemas com isto. Carlo Ancelotti deu ordens na Juventus e no AC Milan, clubes que não gostam nada um do outro, e o mesmo está a fazer Maximiliano Allegri, hoje na Juve depois de ser campeão nos milaneses. Nisto são muito diferentes dos portugueses e, neste caso, não fará mal generalizar. Primeiro, é raro que um futebolista chegue a Lisboa e jogue pelos dois clubes da cidade que têm pouco de amigos e muito de rivais. E mais raro é haver um treinador a quem o destino faça dar ordens no Sporting e no Benfica — apenas aconteceu oito vezes em mais de 100 anos de histórias que leões e encarnados já têm contados.
Por isso é que parece pouco escrever que a decisão de Jorge Jesus é uma surpresa. Porque é muito mais do que isso, é uma raridade das grandes. Depois de seis anos no Benfica, o treinador optou por ir logo para o Sporting, sem escalas ou períodos sabáticos pelo meio. De um rival vai para o outro. E uma viagem assim só tinha sido feita uma vez, nos tempos em que uma bola de futebol era pesada e os jogadores tinham nos pés botas (mesmo botas) pesadas e de cabedal. Foi em 1931, quando um inglês chamado Arthur John chegou ao Benfica depois de contar seis épocas a treinar o Vitória de Setúbal.
A história já tem mais de 80 anos, mas diz-se que este britânico, além de treinar, também massajava as pernas e músculos dos jogadores a meio dos jogos, sempre que eles se aproximavam do banco de suplentes. Daí que o chamavam de treinador-enfermeiro. Fossem os seus hábitos estranhos, ou não, a verdade é que os encarnados sorriram, e muito, com ele: Arthur conquistou dois Campeonatos de Portugal, os primeiros na história do clube, e foi o primeiro treinador bicampeão pelo Benfica, em 1929/30 e 1930/1931. O inglês estava em altas, mas depois tomou uma decisão — mudou-se para o rival. Fê-lo a troco de 16 contos, quantia que na altura valia muito mais do que a conversão atual para euros, mas que não se compara aos seis milhões de euros brutos que Jorge Jesus irá receber no Sporting.
O inglês foi para o Sporting e lá passou outras duas temporadas, antes de se despedir do clube sem qualquer caneco conquistado. A mudança, aí, não resultou. E essa parece ser a única regra que se aplica sempre que um treinador passou de um rival para o outro — a de conquistar títulos no Benfica e não no Sporting. Mas como qualquer regra tem a sua exceção, aqui também houve uma, graças a Otto Glória. O brasileiro que, em 1966, pegou na seleção nacional e com a ajudinha de Eusébio a guiou até ao terceiro lugar do Mundial, foi o único a conseguir ser campeão nacional na Luz e em Alvalade.
Conseguiu-o, primeiro, com os encarnados, com quem conquistou quatro campeonatos (1955, 1957, 1968 e 1969), separados pelos dois períodos em que tomou conta da equipa do Benfica. Pelo meio chegou-lhe estar apenas uma temporada no Sporting (1965/1966) para também ganhar um título de campeão nacional.
Antes e depois da segunda passagem de Otto Glória pelo Benfica apareceu por lá um chileno que também soube ganhar. Fernando Riera conseguiu ser três vezes campeão na Luz, duas delas consecutivas, embora o último título já tenha sido partilhado com o técnico brasileiro — Riera saiu do clube em novembro de 1967 e, na altura, foi Glória quem segurou nas rédeas e prosseguiu a aventura que terminaria na conquista do campeonato. O chileno, depois, foi o treinador que deu ordens no Sporting na primeira temporada após o 25 de abril, mas nada ganhou. Na mesma época (1974/1975) chegou Mirolad Pavic ao Benfica, um jugoslavo que fez o suficiente para acabar a levantar a taça de campeão. O sucesso, como sempre, chamou atenções e, três anos volvidos, o Sporting contratou-o para ver o que dava. Não deu em nada, zero títulos.
Seguiu-se Jimmy Hagan no Benfica e o inglês não fez por menos: ganhou três campeonatos seguidos, entre 1971 e 1973, com uma Taça de Portugal à mistura. Em 1976 arrancou com uma época nos leões, mas nada de conquistas. E o britânico foi o últimos dos treinadores que já andaram nos dois lados a vencerem canecos em que rival fosse. Ao britânico seguiram-se três portugueses que, por muito que fizessem, não conseguiram dar títulos ao Sporting ou ao Benfica.
Manuel José foi o primeiro da história a treinar os leões e só depois os encarnados — sucedeu a Artur Jorge no Benfica e não conseguiu revalidar o título. Fernando Santos foi o primeiro a experimentar uma coisa: a tentar ganhar primeiro no Sporting e só depois no Benfica. Não o fez em lado nenhum. O último a aventurar-se nesta peripécia foi Jesualdo Ferreira, que também nada fez em cada um dos rivais. No Sporting, aliás, mesmo que só tenha lá chegado com a temporada (2012/2013) a meio, foi o treinador responsável pela pior classificação de sempre do clube no campeonato, um sétimo lugar.
E agora, Jesus, depois dos 10 títulos no Benfica, como vai ser no Sporting?