Título: A História do Corpo Humano
Autor: Daniel E. Lieberman
Editora: Temas e Debates/Círculo dos Leitores
Páginas: 544
Preço: 24,40€

Corpo Humano

Somos sete mil milhões, nenhum predador nos mete medo, estamos presentes em todos os continentes e até nas mais remotas, minúsculas e inóspitas ilhas, somos a espécie dominante nas selvas húmidas dos trópicos, nos desertos escaldantes e na tundra batida pelo vento glacial, moldámos o planeta aos nossos interesses e conveniências. Como foi este sucesso possível, atendendo a que começámos de forma tímida e pouco promissora como um símio habituado a viver nas árvores a quem as mudanças climáticas pregaram uma partida, convertendo as florestas densas em savanas e obrigando os nossos antepassados a procurar outro modo de vida?

Responde Daniel Lieberman, professor de Biologia Evolutiva Humana em Harvard: “A haver uma adaptação especial dos humanos modernos que justifique o nosso êxito evolutivo […], ela terá de ser a nossa propensão para sermos adaptáveis, devido à extraordinária capacidade de comunicar, cooperar, pensar e inventar.”

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O Homo sapiens médio tem desempenhos lamentáveis em velocidade de ponta, é muito desajeitado em cima das árvores, tem fraca capacidade muscular (um chimpanzé de 50 Kg tem o dobro da força de um homem de 70 Kg), é destituído de garras, os dentes são fracos e pequenos e a força das mandíbulas é risível, mas conseguimos compensar estas fraquezas com um cérebro desproporcionadamente grande – em média 1350 cm³, enquanto o chimpanzé se fica pelos 390 e o gorila pelos 465, apesar de este último ter um corpanzil de 135 a 180 Kg. Mas, como Lieberman faz questão de realçar, o cérebro grande (e tudo o que lhe está associado, como a linguagem e a capacidade de cooperação) não explica tudo no nosso peculiar caminho evolutivo.

Desenvolvemos também algumas capacidades físicas invulgares: não somos bons em sprint, mas poucos nos batem em corrida de fundo, sobretudo a temperaturas elevadas e em atmosferas secas. Antes de termos desenvolvido armas mais sofisticadas – como o arco e flecha –, a técnica de caça apostava menos na eficácia dos chuços de madeira do que no sobreaquecimento das vítimas: embora uma zebra seja muito mais rápida que um homem, os caçadores não a deixavam em paz e alcançavam-na de cada vez que ela parava para retomar o fôlego e arrefecer.

O corpo humano, sem pêlo e com abundância de glândulas sudoríparas, dispõe de uma capacidade de arrefecimento imbatível e o nosso invulgar apêndice nasal (estamos habituados a ele, mas se pensarmos um pouco não há nada parecido entre os mamíferos) está desenhado para humidificar eficazmente o ar antes de este chegar aos pulmões. É verdade que o sentido do olfacto é fraco, mas é compensado pela inteligência que permite aos caçadores humanos interpretar as pistas deixada pela zebra e dar com ela um pouco mais adiante. Ao fim de alguns quilómetros sob o sol inclemente do meio-dia africano e da repetição deste ciclo algumas vezes, a zebra colapsa: KO por insolação. Não é lá muito heróico, não é façanha que dê para contar à noite em volta da fogueira, mas antes isso que morrer de um coice (o coice de uma zebra pode incapacitar um leão, imagine-se o que fará a um símio pouco atlético).

O corpo e o metabolismo do Homo sapiens foram afinados, ao longo de muitos milhares de anos, para esta vida de caçador-recolector, mas o mundo em que vivemos é muito diferente e, embora a evolução humana não tenha parado, como atesta, por exemplo, a difusão da tolerância à lactose entre os povos que se dedicaram à pecuária, ela processa-se muito lentamente, pelo que, na essência, o corpo do Homo sapiens de hoje pouco se distingue do de há 100.000 anos. Muitas das maleitas que hoje nos atormentam resultam deste desajustamento, como demonstra Lieberman neste livro solidamente argumentado e assente no pressuposto de que “o conhecimento da história evolutiva do corpo ajuda a avaliar o porquê do aspecto e funcionamento do corpo e, logo, o porquê de ficarmos doentes”.

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Estará o corpo humano preparado para suportar o estilo de vida moderno?

A incidência crescente da obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardíacas e circulatórias, alergias e outras perturbações auto-imunes, osteoporose, miopia, pé chato e certos tipos de cancro passa assim a ter uma explicação plausível e integrada – e uma explicação que extravasa o domínio da biologia evolutiva e do brilharete intelectual: tem profundas implicações práticas, já que uma das maiores ameaças ao equilíbrio e harmonia das sociedades desenvolvidas do século XXI é o aumento incomportável das despesas de saúde, boa parte das quais decorrem, directa ou indirectamente, das “doenças de incompatibilidade”, resultantes do atrito entre a nossa biologia “primitiva”e o nosso estilo de vida “moderno”.

É aqui que entram em cena os adeptos da “primal diet”, da “dieta ancestral” e da “dieta crudívora”, advogando que a saúde só pode ser reconquistada mediante um “regresso ao Paleolítico”, sobretudo em termos de regime alimentar: nada de cereais, nada de lacticínios, apenas generosos nacos de carne mal passada ou até crua (que, desgraçadamente para os apaixonados do rigor histórico, não poderão ser de mamute ou rinoceronte lanudo), bagas silvestres e mel (talvez com margem para adicionar escaravelhos e térmitas em dias de festa); outros, num extremo oposto, defendem um regime de vegetais crus e sementes.

No que todas estas seitas ortoréxicas estão de acordo é em minimizar o processamento dos alimentos. A maioria dos activistas do “regresso ao Paleolítico” tem, porém, um conhecimento superficial de biologia evolutiva (e de biologia em geral) e faz assumpções pouco ou nada fundamentadas, que o livro de Lieberman desmonta facilmente.

Algo de semelhante é levado a cabo por Paleofantasy: What evolution really tells us about sex, diet and how we live, de Marlene Zuk, uma das mais interessantes escritoras de divulgação na área da biologia, ecologia e evolução, e que aqui dirige a sua ironia e beligerância contra os paleofantasistas. O livro foi publicado originalmente em 2013, tal como A História do Corpo Humano, e além de coincidir com as teorias de Lieberman quanto a nutrição, saúde e exercício físico, contém estimulantes reflexões sobre a evolução da sexualidade humana, repartição de tarefas na família e educação das crianças ao longo da história da humanidade.

Zuk faz ver que o Homo sapiens passou a maior parte da sua existência como caçador-recolector mas tal não significa que esse tivesse sido o pináculo da sua evolução nem que estivesse perfeitamente adaptado a essa vida, nem que a evolução humana tivesse parado no Paleolítico. E realça um aspecto fundamental da evolução que escapa quase sempre a quem pouco sabe sobre o assunto: ela não tem objectivo nem intenção e não visa a perfeição, apenas se limita a “desenrascar” – como disse François Jacob, a evolução não é um engenheiro, é um engenhocas.

De volta ao mundo presente, com os orçamentos de Estado da maioria dos países desenvolvidos cada vez mais sobrecarregados com o tratamento das “doenças de incompatibilidade”, Lieberman espanta-se por se investir tão pouco na sua prevenção (que representa apenas 5% do orçamento dos National Institutes of Health dos EUA), já que esta “é uma forma de longe preferível e mais económica de promover a saúde e a longevidade”. Acontece que a prevenção dá muito menos dinheiro a ganhar às empresas do sector médico e farmacêutico do que o tratamento e, por outro lado, os anunciantes do sector agro-alimentar “gastam rios de dinheiro anualmente para levar alimentos saboroso e desejáveis, mas pouco saudáveis, às crianças”. A disparidade de esforços está bem patente nestes números: “em 2004, a criança americana média entre os dois e os sete anos viu mais de 4400 anúncios televisivos a alimentos infantis, mas apenas cerca de 164 anúncios do serviço público” fomentando práticas alimentares saudáveis.

Lieberman não anela pelo “regresso ao Paleolítico”, não tem um visão idílica da vida pré-histórica e admite que “os habitantes do mundo desenvolvido estão melhor hoje do que os caçadores-recolectores alguma vez estiveram”, mas entende que algo pode e deve ser feito pelos “milhares de milhões de pessoas [que] sofrem de doenças de abundância, novidade e desuso que costumavam ser raras ou desconhecidas” e que isso passa por reconhecer as contradições de raiz biológica que nos atormentam: “somos símios bípedes um pouco anafados e pelados que desejam açúcar, sal, gordura e amido, [embora estejamos] adaptados para o consumo de uma dieta variada de frutos e legumes fibrosos, frutos secos, sementes, tubérculos e carne magra” e “apreciamos o descanso e a descontracção, mas o nosso corpo continua a ser o de um atleta de resistência que evoluiu para caminhar e […] correr muitos quilómetros por dia”.

Se um laboratório farmacêutico multinacional, num acto de generosidade suicida, oferecesse exemplares de A História do Corpo Humano a todos os ministros da saúde e decisores com responsabilidades nas políticas de saúde pública pelo mundo fora, talvez pudesse salvar-se a humanidade de terminar a sua invulgar carreira soçobrando num pântano de “colesterol mau”.