Marcello Duarte Mathias teve uma vida de diplomata. Entre 1970 e 2003 esteve em locais tão diferentes como Brasília, Bruxelas, Nova Iorque, Nova Delhi, Buenos Aires e Paris, mas é na Abuxarda, não longe de Cascais, que vive e escreve. Diários. Aí nasceu o recém-publicado o “Diário de Abuxarda”, que entusiasmou João van Zeller.

Para ele, é “curioso como a francofonia adquirida em Paris na sua adolescência se fusiona com o anglosaxonismo depois bebido em Oxford, para redundar num lusitanismo convicto e iluminado”. Considera por isso que o livro “é para ler como quem prova um grande Vinho do Porto Vintage: exige ser degustado, mastigado, bochechado, levado ao palato para, finalmente, ser saboreado com tranquilidade e sem pressa. Contém uma leveza feérica, e uma profundidade metafísica que pede essa abordagem cerimoniosa”. Mais: “A solidez das convicções é fortalecida pela elegância do atrevido desafio ao ‘politicamente correcto’”.

Foi por isso que João Van Zeller elaborou o glossário que aqui publicamos, e que reduziu à quinta parte das citações inicialmente seleccionadas. É uma selecção que o autor considera “naturalmete discutível”, no fundo uma introdução ao perfil diarista de Marcello Mathias.

O livro “Diário da Abuxarda” é apresentado quarta-feira, 17 de Junho, às 18k30, na Livraria Buchholz, por Clara Rocha.

Acordo ortográfico
A língua portuguesa é a nossa última fronteira. Perdida esta, não haverá outras. P220

Amigos da onça
…denunciam-se nos pormenores : nunca nos felicitam e jamais o farão, por termos ganho a maratona, mas criticam-nos, isso sim, pela cor das sapatilhas. P358

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Argentina
Gaveta com fundo falso, ilusão de óptica, projecto inacabado eternamente adiado, a Argentina, à semelhança de certas pessoas, vive em permanência uma vida dupla. À procura de uma identidade que lhe está sempre a fugir das mãos, sabendo ela que jamais a alcançará. P211

Aristocracia
Ignorantes, confundem snobismo com aristocracia. P271

Arte
Forma de questionar a realidade. 223

Autenticidade
São os nossos fracassos, que não partilhamos com ninguém. P306

Autobiografia
Toda a autobiografia é uma sucessão de íntimas obsessões

Brasil
O último grande tabu da intelectualidade nacional. P162

Burca
…de burca, olhos amendoados e as unhas dos pés pintadas… A burca – supremo afrodisíaco? P192

Censura
A censura das nossas sociedades democráticas traduz-se na conjura do silêncio. Tão invisível quanto eficaz. Como é sabido, não ter existência mediática equivale a não existir. P273

Cultura
A cultura é o que fica depois de expurgada a erudição. P274

Deus
Ténue é a linha de fronteira entre crença e descrença. Deus e o abismo da sua ausência. P74

Deus
Para o crente, todo o mistério é só Deus, sendo o invisível apenas ressonância dessa outra presença que se prolonga no tempo e com ele se confunde, à maneira de um eco que não se extingue. P76

Deus
…não é Deus, para todo o crente, reencontro de certezas? P244

Diário
O meu divã freudiano são as paginas deste diário. P240

Diário
Corresponde à sempre renovada ficção do seu autor. P276

Envelhecer 
Envelhecer é uma distância que nos torna irreconhecíveis. Porque nos desfigura. Envelhecer é caricaturar-se. P226

Escrever
Saber escrever é reduzir três parágrafos a três linhas. Sim, restringir é valorizar; sugerir é ampliar… O espírito de síntese como supra sumo da distinção intelectual. P72

Escrever
…na prosa, tal como no talho, eliminar a gordura é a primeira prioridade. Com uma diferença: há que conservar o nervo. P174

Escrever
Saber escrever: ser-se simples, sem ser pobre, conciso sem secura. Aliar no mesmo movimento lucidez e emoção. Aclarar e aprofundar. Procurar o ponto de equilíbrio, e mantê-lo. Simplicidade, elegância, elevação. O fio da navalha: fugir à banalidade sem procurar ser original. Também escrever é uma arte de viver. P37

Espanha e Portugal
No tratado de Fontainebleau assinado entre a Espanha e a França em Outubro de 1807… se tivesse sido levado a cabo… seria o desaparecimento de Portugal do mapa da Europa, retalhado (entre as partes) em três pedaços distintos, como o dito Tratado previa.

Espanha e Portugal
Saramago: “Portugal acabará por integrar-se na Espanha”. … um iberismo íntimo. P62

Espanha e Portugal
Já se suspeitava de tudo isto, mas agora fica-se a saber sem margem para dúvidas que o General Franco, em Dezembro de 1940, decidira, por própria, invadir Portugal. P182

Espanha e Portugal
Serrano Suñer ao seu colega alemão Ribbentrop “geograficamente falando, Portugal não tinha o direito de existir”. P182

Espanha e Portugal
…“Espanha, Espanha, Espanha”(!?) …Ingenuidades destas, que nascem de um enorme vazio em termos de cultura histórica e diplomática, assemelham-se a autênticas rendições (de José Sócrates). Ou são tidas como tal, o que ainda é pior. P277

Europa
Comboio que descarrilou algures, e já não chegará a tempo. A que horas era suposto chegar? P61

Europa
Na Europa de hoje, a dissidência cultural paga-se com o ostracismo, versão actual da “morte civil” medieval. P85

Europeu
Não há como estar fora da Europa para logo me sentir incuravelmente europeu

Falta de carácter
A inteligência e a falta de carácter convivem mal, denunciando-se mutuamente. P235

Francisco Sá Carneiro
Com Sá Carneiro o PSD encontrou o seu Dom Sebastião de fato e gravata. Mito inoxidável. P238

História
…jogo de contraste e sempre renovada interrogação – é sobretudo o romance do que poderia ter sido… É o que a torna inesgotável. P169

Holywood (entrega de Óscares)
…a quintessência sensorial do politicamente correcto. P134

Hopper
Ao brilho, eficácia, trepidação da existência Americana, que está sempre a encontrar soluções e a inventor o furo, Hopper contrapõe a solidão, o abandono, o naufrágio quotidiano. O desalento das almas…representa o anti-american dream. P331

Improvisação
Em Portugal, até as tradições são improvisadas. P274

Inconformismo
…a nossa época, supostamente libertária, só admite irreverências previamente aprovadas e estabelecidas. Inconformismo, só encartado. A verdadeira originalidade assusta e não é aceite. P206

Língua
A nossa língua: íntima essência intraduzível do que somos. P16

Maçonaria
Ciente da influência preponderante da Maçonaria em tantos aspectos da vida portuguesa, quedo-me sempre um tanto ou quanto incrédulo quando me vejo alvo de expressões públicas de simpatia e louvor. Vá lá, é melhor assim, consola-se a vaidade que bem precisa, sem interferências externas, o mérito é só meu. P74

Medíocres
A erudição, e a palavra difícil, seu corolário, constituem o grande refúgio dos medíocres superiores. P383

Mediocridade
Raras vezes é a mediocridade inofensiva. P266

Mediocridade
Ao lado de tantos daqueles que sofrem só por serem quem são, temos os medíocres engravatados que se satisfazem com o que nunca serão. P270

Missa de corpo presente
…espécie de barómetro mundano para avaliar da relevância social, não do defunto – esse, coitado, já não dá cartas – mas dos parentes do defunto. P163

Morte
Para uma vida não vivida, que ficou aquém de si mesma, a morte surge como uma sanção tardia. P277

Morte
Em termos individuais a morte é a personificação do tempo. P22

Mulheres
Só as mulheres, e só elas, têm esse dom de nos fazer vislumbrar num relance, a infinita imensidão que nos falta… P366

Mulheres (no verão) 
Saias curtas, saias justas, saias esvoaçantes; magras altas pernas nuas de tornozelo fino. Graça e leveza, alegria ondulante no pisar, desgarre no olhar. Sandálias rasas de atilhos, pés bonitos – a expressão aristocrática da beleza feminina… Não há dúvida: as mulheres são a subversão do mundo. P217

Nação
Partilha afectiva, um querer ser diferente, uma vontade comum de sobrevivência. P310

Nacionalidade
A nacionalidade, e a ideia que lhe subjaz de pertença e raiz, foi substituída por essa coisa híbrida… chamada “cidadania”, que delicia os nossos políticos que a ela se referem de voz embargada. P203

Palco
A verdade de um palco são os seus bastidores. P264

Pátria
Malha intangível de sinais, símbolos, ritos, rituais, datas e comemorações a par de gentes, monumentos, ruínas, vilezas, catástrofes e heróis. P310

Paula Rego
Há nela uma revolta essencialmente de carácter ontológico contra a miséria da condição humana: clamor de ódio, grito de alma, asfixia mental. Ajuste de contas com a ferocidade do mundo à sua volta, que ela se compraz em denunciar com igual crueza, não sem uma ponta de comprazimento, porventura memo de masoquismo –é o seu lado infantil. P176

Poder
…Às figuras de excepção, o poder confirma-lhes a excepcionalidade. Aos medíocres, confere-lhes autoridade e impunidade, distingue-os de entre os demais. São os Condes de Abranhos que por aí pululam aos montes. P181

Portugal
O mistério de Portugal não é Alcácer Quibir, ou as desgraças e misérias da descolonização, é a epopeia dos Descobrimentos. P195

Povo
A grandeza de um povo não se mede pelas estatísticas. É, antes de mais, uma questão de fibra moral. P255

Sedução
Toda a sedução é subversão. Daí que a indiferença seja o principal atributo dos grandes sedutores. P343

Têmpera de espírito
Mede-se pela capacidade de solidão de que é capaz. P319

Vida
É o lado inacabado da vida que me angustia muito mais que a brevidade do tempo. P202