Um ex-vereador da Câmara de Sines, um inspetor da ASAE, um comandante da Polícia Municipal e duas pessoas ligadas a Polícia Judiciária. Além do caso conhecido de Miguel Relvas e do de Nuno da Câmara Pereira, descoberto pelo Observador, há, pelo menos, mais cinco exemplos de pessoas que ocupam ou ocuparam cargos relevantes que viram, agora, as suas creditações anuladas nas licenciaturas da Universidade Lusófona depois de terem sido detetadas irregularidades durante a atribuição das equivalências.
É o caso de José Manuel Gonçalves Pica, atual subdiretor de segurança da Caixa Geral de Depósitos. No ano letivo de 2010/2011, o ex-inspetor da PJ inscreveu-se no curso de Estudos de Segurança da Lusófona. No mesmo ano, saía da impressora da Universidade a certidão de licenciatura com o seu nome. Aquele que foi um dos responsáveis pela investigação ao “Caso Moderna” viu a Universidade Lusófona a atribuir-lhe 165 créditos (ECTS) pelo seu percurso profissional e currículo académico. Ou seja, numa licenciatura que contabiliza um total de 180 créditos – 36 unidades curriculares -, Gonçalves Pica teve apenas de fazer três “cadeiras”, cada uma a valer cinco créditos.
Mais: a investigação da Inspeção-geral da Educação e Ciência (IGEC) detetou irregularidades na creditação de três cadeiras que, naquela altura, não existiam sequer nos planos de curso da Universidade Lusófona.
Em 2009, o IGEC já tinha concluído que havia irregularidades quando eram atribuídas equivalências com base no currículo profissional dos alunos. Três anos depois, a própria Universidade – por recomendação do Ministério da Educação – fez uma auditoria interna para detetar e corrigir essas eventuais irregularidades. No entanto, no caso de Gonçalves Pica – e não só – o desfasamento entre as creditações atribuídas e as cadeiras que efetivamente constavam nos planos dos cursos da Universidade continuou a existir.
A própria Comissão Específica de Creditação (CEC) do curso de Estudos de Segurança reconheceu, posteriormente, que, na altura da atribuição das creditações profissionais ao ex-inspetor da PJ “não estavam estabelecidas as relações entre as competências adquiridas em contexto profissional com as competências das unidades curriculares creditadas”. No relatório do IGEC, pode ler-se que Gonçalves Pica já manifestou interesse em regularizar a situação.
As irregularidades detetadas são, em muitos dos casos analisados pelo Observador, difíceis de explicar. O próprio relatório da IGEC admite que fatores como o “caráter demasiado aberto da legislação”, a “inexperiência existente em processos de tal natureza” e a “falta de exemplos nacionais e internacionais” que servissem de modelo a seguir podem ajudar a explicar este tipo de situações. E não exclui a hipótese de se terem tratado de “falhas na própria tramitação dos processos que devem ser imputadas aos responsáveis de cada serviço/unidade orgânica responsável pelas mesmas”.
O caso de Bruno Palhinhas parece ser um desses. O inspetor da PJ e um dos envolvidos na investigação ao desaparecimento de Madeleine McCann, também ele aluno do curso de Estudos de Segurança, viu as suas creditações serem anuladas pelas mesmas razões invocadas no caso de Gonçalves Pica.
Com base no seu currículo profissional, que contava já com várias formações enquanto inspetor estagiário da PJ, Bruno Palhinhas teve equivalência a 16 “cadeiras” em 36 possíveis. Mas, mais uma vez, a IGEC detetou irregularidades na creditação de três cadeiras que, naquela altura, nem existiam nos planos de curso da Universidade Lusófona.
Depois da audição interna de 2012, essas “cadeiras” – Direito Processual Penal, Psicossociologia e Técnicas de Serviço Policial – foram retiradas do currículo do aluno, tendo sido substituídas por Direito Processual Penal II, Psicologia Social e Inglês II, numa ato administrativo que o IGEC reconhece como sendo uma tentativa infrutífera de corrigir a situação.
Tal como aconteceu a Gonçalves Pica, também Bruno Palhinhas viu o CEC do curso considerar que as equivalências que lhe foram atribuídas não correspondiam – pelo menos na totalidade – às suas “competências adquiridas em contexto profissional”. E, tal como o seu antigo colega de profissão, também Bruno Palinhas já demonstrou interesse em regularizar a sua situação académica junto da Universidade.
As falhas detetadas no curso de Estudos de Segurança não se ficam por aqui. De acordo com o relatório da IGEC, 47 dos 52 processos analisados foram anulados com base em irregularidades na altura de atribuir equivalências. E os motivos são (quase) sempre os mesmos: as equivalências atribuídas não chegavam sequer a constar no plano curricular dos cursos lecionados na Lusófona e as competências adquiridas em contexto profissional dos alunos não correspondiam às competências das unidades curriculares creditadas.
É o caso do inspetor da ASAE João António Antunes Mendes, que viu duas das 14 cadeiras a que teve equivalência – Direito Processual Penal e Técnicas de Serviço Policial – serem substituídas por Direito Processual Penal II e Informática para as Ciências Sociais. Mais uma vez, o relatório do IGEC voltou a concluir que a Universidade tentou de forma artificial alterar uma situação que era, desde o início, nula.
Outra das falhas que saltou à vista dos responsáveis pela investigação conduzida pela IGEC foi a atribuição de equivalências a “cadeiras” de opção que, mais uma vez, não existiam nos planos de estudos ministrados pela Universidade. Depois da auditoria interna de 2012, a Lusófona resolveu alguns desses casos alterando as cadeiras de opção que não existiam por outras unidades curriculares lecionadas na instituição. Mas em alguns casos nem “existe notícia da notificação ao aluno” destas alterações.
André de Jesus Gomes é um deles. O comandante da Polícia Municipal de Lisboa, já aposentado, teve equivalência à “cadeira” de Teoria da Lei Penal, como opção, depois de a ter concluído numa anterior matrícula na Universidade Lusíada. O problema é que a unidade curricular em questão não era lecionada na Lusófona. Depois de ter sido revista a situação do aluno, em 2012, essa cadeira ‘fantasma’ de Teoria da Lei Penal continua a existir no novo certificado emitido pela Universidade da Lusófona.
No mesmo processo de revisão do processo curricular de André Gomes, a instituição decidiu substituir duas cadeiras de opção concedidas em 2011 “alterando-as e emitindo novo parecer, novos termos e novo certificado”, sem que o aluno tenha sido, aparentemente, notificado. “As [unidades curriculares] são: Técnicas do Serviço Policial e Legislação e Segurança Rodoviária que cederam lugar a Informática para as Ciências Sociais e Direito Penal”, acrescenta o relatório. Tanto André Jesus Gomes como João António Antunes Mendes já se mostraram igualmente disponíveis para regularizar a sua situação.
O caso de José Carlos dos Santos Guinote, ex-vereador da Câmara de Sines e candidato pelo Bloco de Esquerda à mesma autarquia, é ainda mais complexo. Inscrito no curso de Arquitetura (com mestrado integrado), Guinote contava já com um mestrado em Planeamento Regional e Urbano atribuído pela Universidade Técnica de Lisboa. Por isso, ponderados os currículos académicos e profissionais do ex-vereador, foram-lhe atribuídos 116 créditos, num total de 300.
No entanto, foram detetadas falhas, desde logo, relacionadas com o número de créditos atribuídos a determinada “cadeira” – falhas que foram corrigidas em 2012 sem que fossem “objeto de referência”. Mas as irregularidades não se ficaram por aqui. O aluno teve equivalências a duas “cadeiras” de opção (Optativa I e II) que, até ao momento, nunca forcam definidas pela Universidade.
“Foi emitido, pela Universidade da Lusófona, um certificado intermédio ao aluno, [em 2012], onde constam as referidas unidades curriculares optativas 1 e 2 (Economia Regional e Urbana I e II)” – unidades curriculares realizadas na Universidade Técnica de Lisboa -, “sem que para as mesmas, a esta data, exista qualquer determinação de creditação que as faça corresponder às unidades curriculares oferecidas pelo Conselho Científico do Curso”.
Ou seja, na prática, o facto de ter completado com êxito as unidades curriculares de Economia Regional e Urbana I e II na Universidade Técnica de Lisboa, permitiu que José Guinote tivesse equivalência a duas “cadeiras” indeterminadas na Universidade da Lusófona. Até ao momento, o ex-vereador da Câmara de Sines não se mostrou disponível para regularizar a situação junto da Universidade.
“Uma fantochada”, diz José Guinote
Em declarações ao Observador, José Carlos Guinote não poupou críticas à Lusófona e negou que alguma vez tivesse sido contactado pela Universidade no sentido de regularizar a situação. O ex-vereador fala mesmo em “fantochada”.
“Nunca fui contactado pela Lusófona que me informou, hoje, que a correspondência tinha sido devolvida. Nunca vi o meu nome associado a esta fantochada, exceto hoje [quarta-feira]”, afirmou Guinote por email.
E não foi por falta de oportunidade, insistiu o ex-vereador. “Caso quisessem de facto contactar-me, poderiam tê-lo feito, porque desde 2012 frequento o Doutoramento em Urbanismo na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, sou, como a Lusófona sabe, membro da Ordem dos Engenheiros e contactável por essa via ou outra qualquer”.
Dizendo-se apanhado de surpresa pela anulação do seu processo de equivalências, o ex-vereador fez questão de se demarcar do “Caso Relvas” e de explicar que frequentou o “curso de Arquitetura na Lusófona, num curto período de tempo”, tendo abandonado a Universidade “por opção pessoal e por razões particulares“, sem nunca ter “concluído qualquer grau académico com ele relacionado”. Uma decisão de que nunca se arrependeu. “Arrependo-me apenas de lá ter entrado“, reiterou.
Além do mestrado em Planeamento Regional e Urbano, atribuído pela Universidade Técnica de Lisboa, e de frequentar o Doutoramento em Urbanismo na Faculdade de Arquitetura na mesma instituição, o ex-vereador lembrou, ainda, que é detentor de uma licenciatura “pré-bolonha” em Engenharia Civil, pelo Instituto Superior Técnico. E acusou a Universidade Lusófona de ter ignorado as suas habilitações profissionais na área das obras públicas e privadas, na “coordenação de vários projetos de execução de equipamentos públicos e privados” e o “facto de ao abrigo do período de transição para a revogação do Decreto-lei 73/73 ter estado legalmente habilitado a subscrever projetos de Arquitetura nos cinco anos posteriores a 2009”.
“As minhas equivalências foram-me atribuídas – em mais de 90% – por equivalências académicas. As minhas equivalências profissionais (…) não me permitiram obter mais do que uma dúzia de créditos. Um escândalo resultado de uma posição corporativa e da falta de rigor cientifico na análise destes casos. Dessa forma o meu caso é o inverso do Relvas”.
O engenheiro fez ainda questão de esclarecer que nunca utilizou “a classificação profissional de arquiteto – o que seria ilegal visto não possuir qualquer grau académico relacionado com a arquitetura”. José Carlos Guinote foi vereador eleito pelo PS como independente na Câmara de Sines e candidato independente apoiado pelo Bloco de Esquerda à mesma autarquia, em 2009.
Direito de Resposta
Ao abrigo da lei 24º e sgs. da Lei 2/99, de 13 de janeiro, José Carlos Guinote, ex-vereador da Câmara de Sines, exigiu o direito de reposta a propósito da publicação do artigo “Da PJ à Câmara de Sines, outros cinco casos da Lusófona”, publicado originalmente a 24 de junho de 2015. Na íntegra, a nota de esclarecimento de José Carlos Guinote e a nota do Observador:
“1 – No dia 24.06.2015 o jornal digital que dirige publicou uma notícia com o título “Da PJ à Câmara de Sines, outros cinco casos da Lusofona”. Essa noticia estabelecia uma relação entre o caso Relvas e o de cinco pessoas “que ocuparam ou ocuparam cargos relevantes” e que viram as suas creditações anuladas nas licenciaturas da Universidade Lusófona.
2- Tendo a notícia sido publicada sem que o vosso jornal tenha sequer tentado falar com o visado, optando por publicar um conjunto de inverdades, foi confrontado com os sucessivos protestos enviados através de email.
3 – No entanto, apenas na tarde de 27.06 a notícia foi acrescentada sem que os erros denunciados tenham sido alterados, nem o título corrigido. Essa alteração foi feita quando a notícia já não se encontra facilmente no site. Nessa altura já tinha sido objecto de mais de 500 partilhas, situação que não se alterou.
4 – Contrariamente ao que dão a entender na vossa notícia o visado não concluiu qualquer licenciatura em Arquitectura na Lusofona, tendo apenas frequentado 3 semestres e decidido, em 2012 (!!!) abandonar a referida Universidade.
5 – O visado apenas obteve equivalências profissionais a 21 créditos num total de 300. Isso representa apenas 7% do total de créditos e deve ser recorde absoluto na Lusofona, mas por defeito. Até ao momento recusaram sempre esclarecer esta questão insistindo nos “116 créditos num total de 300”.
6 – Referem que o “ex-vereador da Câmara de Sines não se mostrou disponível para para regularizar a situação”, certamente um trecho retirado do relatório que citam, no qual o visado deve ser identificado por ex-vereador. Apesar de ter esclarecido que essa afirmação é falsa optaram por mantê-la no corpo da noticia.
7 – Referiram na noticia que o visado era detentor de um Mestrado em Planeamento Regional e Urbano, omitindo que se trata de um cidadão detentor de uma licenciatura em Engenharia Civil desde 1982, o que faz toda a diferença para a obtenção de créditos por equivalência académica.
8 – Ao longo destes anos nunca foi contactado pela Lusofona. Embora a universidade se queixe de a correspondência ter sido devolvida não tentou outras possibilidades, nomeadamente através da Ordem Profissional ou outra. Desconhecia até ao dia 24.06.2015 que existissem quaisquer irregularidades e não tirou delas qualquer benefício nem é por elas responsável.
9– A utilização do nome do engenheiro José Carlos Guinote nesta infâmia, nos termos em que foi feito, atenta contra o seu direito ao bom nome e ao respeito profissional. Independentemente do que irá ser feito no local apropriado solicitamos-lhe a publicação deste esclarecimento ao abrigo da lei de imprensa”.
José Carlos Guinote
N.D.:
O Observador esclarece que em momento algum do referido artigo escreveu que José Carlos Guinote tinha concluído o mestrado na Universidade Lusófona ou que tenha, por isso, visto o seu diploma anulado. José Carlos Guinote teve, sim, o processo de atribuição de equivalências anulado.
A notícia em causa baseia-se no relatório da Inspeção Geral da Educação e Ciência (IGEC). No referido relatório, pode ler-se que José Carlos Guinote foi contactado pela Universidade Lusófona no sentido de regularizar a situação e que não terá correspondido ao pedido.
No entanto, e de acordo com os esclarecimentos posteriores de José Carlos Guinote, o engenheiro garante que nunca recebeu qualquer notificação da Universidade. Essa informação, assim como outras, foi adicionada ao artigo depois de o Observador ter tido autorização formal de José Carlos Guinote para o citar.
Além desta informação, o Observador fez questão de acrescentar à peça todos os esclarecimentos que o engenheiro se prestou a dar.
* Artigo atualizado com as declarações e com o direito de resposta de José Carlos Guinote