O Oxi venceu com mais de 60% dos votos, para satisfação de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia que agora se diz “aliviado” por já não ter esse cargo. Foi a noite do referendo grego de 5 de julho, um referendo que mobilizou a população mas que, uma vez concluído, viria a não ter qualquer efeito prático na forma como se está a gerir o problema na Grécia. Varoufakis já previa, quando entrou no palácio Maximos e viu um Alexis Tsipras “deprimido” apesar da vitória no referendo.
Varoufakis conversou, depois da demissão, com um escritor australiano de ascendência grega, Christos Tsiolkas, que escreveu um artigo publicado na revista australiana Monthly. A “Tragédia Grega” é o nome do artigo, uma espécie de entrevista, cujas respostas de Varoufakis lhe transcrevemos abaixo.
Como é que se sentiu na noite do referendo e como é que se sente agora [passada uma semana do referendo]?
Deixe-me apenas descrever o momento que se seguiu à divulgação dos resultados. Fiz uma declaração no Ministério das Finanças e, seguidamente, dirigi-me ao gabinete do primeiro ministro, na Mansão Maximos, para me encontrar com Alexis Tsipras e os restantes membros do ministério. Estava extasiado. O “não” categórico, inesperado, foi como um raio de luz que perfurava uma escuridão densa e profunda. Caminhava para o gabinete com ânimo e leveza, levando comigo aquela energia incrível das pessoas lá fora. Tinham vencido o medo e com essa vitória sobre o medo sentia-me como se estivesse a flutuar no ar. Mas, no momento em que entrei na Mansão, toda esta sensação desapareceu simplesmente. Lá dentro, também havia uma atmosfera eletrizante, mas pela negativa. Era como se a liderança tivesse sido abandonada pelo povo. E a sensação que tive foi de terror. O que é que fazemos agora?
E como estava Alexis Tsipras? (por quem Varoufakis insiste que o respeito e a amizade que continuam inalterados, não obstante ser evidente – escreve Christos Tsiolkas – o sentimento de tristeza e desilusão na sua resposta.)
Percebi que estava desanimado. Foi uma grande vitória, uma vitória que julgo que ele tenha saboreado, bem lá no fundo, mas com a qual ele não conseguia lidar. Ele sabia que o ministério não iria conseguir lidar com a vitória. Era evidente que havia elementos do governo que o estavam a pressionar. Mesmo em poucas horas, já tinha sido pressionado por figuras do governo para transformar, efetivamente, o não num sim, a render-se. Quando percebi isso, confrontei-o com uma escolha clara: usar os 61,5 % do “não” como uma força estimuladora ou render-se. E disse-lhe, antes de ter hipótese de responder: “Se optares pela segunda escolha, eu afasto-me. Demitir-me-ei, se optares pela estratégia da cedência. Não te prejudicarei, mas sairei de cena.
“Embora Varoufakis seja prudente nas suas palavras, deixa claro que a saída da zona euro foi algo que ele próprio, Tsipras e os membros da coligação que partilhavam as suas ideias não iriam tolerar”, escreve Christos Tsiolkas.
Sempre julgámos que o projeto europeu, apesar de todas as suas falhas… era uma oportunidade para os europeus se juntarem, que talvez pudesse haver uma oportunidade para subverter as intenções originais e transformá-lo numa espécie de estados unidos da Europa. E, nesse sentido, promover políticas progressivas de esquerda. Esta era a nossa lógica, a forma como tínhamos sido ensinados desde a nossa juventude.
Tsipras olhou para mim e disse “Tens consciência que eles jamais nos darão um acordo. Eles querem ver-se livres de nós.” E depois disse-me a verdade, que havia outros membros do governo a pressioná-lo para que cedesse. Ele estava claramente deprimido. Respondi-lhe: “Faz o melhor com a escolha que tomaste, uma escolha com a qual discordo totalmente, mas não estou aqui para te prejudicar.”
Depois fui para casa. Eram 4h30 da manhã. Eu estava desolado — não pessoalmente, não me importo nada com a minha saída do ministério; na verdade foi um grande alívio. Entre as 4h30 e as 9h da manhã estive sentado a redigir a formulação precisa da minha demissão, porque desejava, por um lado, que ela fosse favorável ao Alexis e que não o prejudicasse, mas, por outro lado, queria que ficasse claro porque é que eu estava a sair, que não estava a abandonar o barco. Era o barco que se tinha desviado da sua rota.
O Eurogrupo fez pressão para a saída da Grécia, com má-fé?
O Eurogrupo não. O ministro das finanças alemão, Wolgang Schäuble. Não se tratava de má-fé, era um plano muito definido. Chamei-lhe “o plano Schäuble”. Ele tem estado a planear uma saída da Grécia como parte do seu plano para a restruturação da zona euro. Isto não é uma teoria. Digo isto, porque ele assim me o disse.
Esta foi a forma que Schäuble encontrou para exigir concessões à França e à Itália, esse foi sempre o jogo. O jogo era entre a Alemanha, a França e a Itália, e a Grécia era — talvez não um bode expiatório — temos uma expressão na Grécia… (em grego) O jóquei bate com o chicote para que a mula o ouça. É uma estratégia clara para influenciar, de Paris a Roma, particularmente de Paris, o tipo de concessões que se relacionam com a criação de um modelo teutónico disciplinador da zona euro.
A Grécia, os credores e o programa de ajustamento
Era uma mistura de indiferença e interesse próprio. É necessário compreender que, para alguns deles, o programa [de austeridade] grego era o trabalho de uma vida, era o bebé deles. Era como o Dr. Frankenstein: um monstro, mas, ainda assim, o seu monstro. Era algo do qual dependiam as suas carreiras. Por exemplo, o Poul Thomsen, que conduziu o programa em nome do FMI de 2010 a 2014, foi promovido com base nesse trabalho e agora é o chefe europeu do FMI.
Quando estas pessoas olham para os efeitos daquilo que fizeram — pessoas nas ruas a alimentarem-se do que encontram nos caixotes do lixo, o desemprego astronómico — o que acontece é o normal processo de auto-racionalização: ora dizendo que tinha de ser feito, porque não havia alternativa, ora culpando o governo grego por não levar a cabo as reformas de forma adequada.
A “falta de humanidade” nas negociações a alto nível
É um ponto de vista muito cínico e utilitário que considera que, para criar o futuro, é necessário sacrificar as pessoas pouco produtivas que não servem para nada. Já os mais inteligentes — e há muito poucos inteligentes — conseguem ver que isto é um disparate. Eles percebiam que o programa que estavam a implementar era catastrófico. Mas eram cínicos. Pensaram: Eu sei a quem devo agradar.
Curiosamente, o ministro das finanças da Alemanha é um homem que entende isto melhor que ninguém. Num intervalo de uma reunião, perguntei-lhe “Assinaria isto, este acordo?” e ele disse “Não, não assinava. Isto não serve para o seu povo.” Essa é a parte mais frustrante, que a nível pessoal seja possível ter esta conversa humana, mas nas reuniões é impossível falar assim, é impossível ter a humanidade ao serviço das decisões políticas. O debate político está estruturado de tal maneira que a humanidade tem de ficar fora da sala.
“Não é verdade” que fosse 18 contra 1 no Eurogrupo
Deixe-me tentar responder da forma mais rigorosa que consigo ao dizer-lhe o seguinte: dos meus colegas do Eurogrupo… [corrige-se a si mesmo] ex-colegas do Eurogrupo — eu já não pertenço ao Eurogrupo, graças a Deus — costumava-se dizer que eram 18 contra um, que eu estava sozinho. Não é verdade, não é verdade. Uma minoria muito pequena, liderada pelo ministro das finanças alemão, fingiam acreditar — fingiam acreditar — que a austeridade que estava a ser imposta aos gregos era a única saída possível, era o melhor para os gregos e que nos bastava aplicar reformas que correspondessem à lógica da austeridade para ficarmos bem, que não estávamos a superar as dificuldades porque somos preguiçosos, que vivemos à custa da bondade dos outros, etc. etc. Mas eram uma minoria. Havia dois outros grupos mais significativos.
Um grupo era formado pelos ministros das Finanças que não acreditam neste tipo de políticas, mas que tinham sido obrigados, no passado, a impô-las aos seus próprios povos com consequências muito nefastas. Ora, este grupo estava aterrorizado com a possibilidade do nosso êxito, já que teriam, desta forma, de responder perante os seus povos… Porque foram eles assim tão cobardes?
E havia um terceiro grupo, França e Itália. Estes são países importantes, estados na linha da frente da Europa, e a forma como eu o caracterizaria é que os seus ministros das finanças não acreditam na austeridade, nem a praticaram de forma séria. Mas o que eles temiam era que, se nos apoiassem, se se mostrassem solidários com os gregos, seriam confrontados com a ira do grupo teutónico e talvez lhes fosse imposta austeridade a eles. Não queriam ser vistos a apoiar-nos para o caso de serem obrigados a sofrer as mesmas afrontas.
Varoufakis enfrentou dificuldades a lidar com o que chama de “cleptocracia” que reina na Grécia?
Enormes! Tivemos de nos confrontar com uma aliança funesta de interesses pessoais e práticas oligárquicas, aquilo que eu chamo o triângulo do pecado da Grécia. Em primeiro lugar, os bancos, os bancos falidos que se mantiveram vivos graças aos contribuintes gregos, mas sem que esses mesmos contribuintes se pudessem manifestar quanto à sua gestão.
Em segundo, os órgãos de comunicação social, em particular os órgãos digitais e a imprensa, que estavam completamente falidos. Mas estes eram controlados pelos bancos, que usaram fundos de resgate para apoiar os jornais e os órgãos digitais para garantir que eles fazem o trabalho sujo dos bancos na forma de propaganda.
E em terceiro, as despesas no setor público. Para dar um exemplo, uma autoestrada na Grécia custa… [corrige-se] custava, no passado, três vezes mais por quilómetro quando comparada com uma autoestrada na Alemanha ou na França. Não queria dizer que as pessoas trabalhassem menos ou que as empresas privadas fossem menos eficientes; eram bastante eficientes. Se quer saber a razão pela qual as autoestradas custam tanto, apenas tem de olhar para o norte de Atenas e examinar as quintas onde vivem os donos dessas empresas.
Lembro-me de um dia ter dado um passeio com a minha prima por Kifisa, um dos bairros mais ricos de Atenas, no final da década de 1980. As casas ostentosas eram chocantes. “O que é que estas pessoas fazem?” perguntei-lhe. “Somos nós que pagamos isto” disse ela resignada e dando palmadinhas no bolso traseiro. Além disso, tínhamos a troika, que estava em conluio com este triângulo.
Conluio?
A troika apresentou, de facto, desafios aos governos anteriores do Pasok e da Nova Democracia. Fizeram-no imensas vezes. Mas nunca ameaçaram cortar-lhes a liquidez porque os governos não conseguiram taxar, de forma satisfatória, os oligarcas ou porque não conseguiram taxar os canais televisivos ou, ainda, porque não tinham conseguido desmascarar as grandes fraudes fiscais relacionadas com contas bancárias na Suíça.
A troika apenas ameaçara cortar a liquidez, se as pensões mais baixas não fossem reduzidas, se os salários mínimos não fossem cortados. Apenas ameaçara estes governos anteriores, se eles ousassem dar mais algum dinheiro aos mais pobres da Grécia. A consciência de classe da troika era desastrosa.
O nosso aparelho de Estado foi contaminado pela troika, de forma muito, muito negativa. Dou-lhe um exemplo. Existe uma coisa chamada o Fundo Helénico de Estabilidade Financeira, que é um ramo do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF). Este fundo continha inicialmente 50 mil milhões de euros — quando eu assumi o cargo, tinha 11 mil milhões — e tinha como objetivo a recapitalização dos bancos gregos. Este dinheiro foi tomado de empréstimo aos contribuintes gregos para financiar os bancos. Não pude escolher o seu presidente e não consegui causar qualquer impacto na forma como este fundo desempenhava as suas funções relativamente aos bancos gregos. O povo grego que me tinha eleito não tinha qualquer controlo sobre como seria usado o dinheiro que ele havia emprestado.
Descobri, finalmente, que a lei reguladora do FEEF me concedia um poder: determinar o salário destas pessoas. Percebi que os salários destes funcionários eram monstruosos para os padrões da Grécia. Num país com tanta fome e onde o salário mínimo desceu para os 520 euros por mês, estas pessoas estavam a ganhar algo como 18 mil euros por mês.
Por isso decidi que, tendo este poder, o iria exercer. Usei uma regra muito simples. As pensões e os salários diminuíram, em média, 40%, desde o início da crise. Emiti um decreto do ministério no qual reduzia os salários destes funcionários em 40 %. Continuava a ser um salário enorme, um salário enorme. Sabe o que aconteceu? Recebi uma carta da troika dizendo que a minha decisão tinha sido anulada, porque não era suficientemente explicativa. Portanto, num país onde a troika insiste em que pessoas com uma pensão mensal de 300 euros vivam com 100, foi recusado o meu exercício de redução de custos e a minha capacidade, enquanto ministro das finanças, para encurtar os salários destas pessoas.
Um empobrecimento irreversível
Nos anos 50 e 60, a Grécia perdeu grande parte do seu capital humano, mas era mão-de-obra não especializada. O grande investimento que se deu na Grécia a partir da década de 1950 foi na área da educação. Tornamo-nos numa nação incrivelmente instruída. No que diz respeito ao nosso setor público e privado, fizemos muito pouco — até em termos do ambiente conseguimos fazer asneiras, tornámo-lo mais pobre.
Mas quando falamos de capital humano, conseguimos fazer grandes progressos, e a tragédia da crise atual é que o estamos a exportar. Jovens qualificados cuja educação foi paga, principalmente, pelo Estado — e as suas famílias, mas principalmente pelo Estado — oferecem agora os seus serviços à volta do mundo inteiro, incluindo na Austrália. E este é o tipo de perda que não pode, simplesmente, ser recuperado. Os edifícios podem ser reconstruídos, as autoestradas podem ser arranjadas, mas este empobrecimento é irreversível.
Declarações de Yanis Varoufakis traduzidas por Xénon Cruz.