O comboio era de morte, mas foi nele que começou uma vida. Anka Nathan, uma judia checa de 28 anos, já estava grávida de nove meses quando, de dentro da carruagem, conseguiu ler uma palavra escrita num muro com letras grandes e negras: “MAUTHAUSEN”. Depois de ter sobrevivido aos guetos para judeus no seu país natal, ao campo de concentração de Auschwitz e a uma fábrica de trabalhos forçados nos arredores da cidade alemã de Dresden, Anka tinha agora uma única certeza: estava ali para morrer.
Foi nesse momento que começaram as primeiras contrações. Reduzida a apenas 30 quilos, esta mulher, da qual mais tarde se virá a dizer que era, naquele momento, um “esqueleto à beira da morte”, começava a dar à luz o bebé que concebera nove meses antes no gueto de Terezín com Bernd Nathan, também ele judeu, que, veio a saber mais tarde, foi morto a tiro em Auschwitz.
À medida que o bebé forçava a saída do seu ventre, Anka gritava. Sabendo que tinha um soldado das SS pelo lado, tentou abafar a própria voz. Ele, por sua vez, disse-lhe: “Podes continuar a gritar”. Assim o fez, entre dezenas de mulheres, a maior parte moribundas, algumas já sem vida, numa carruagem de transporte de carvão onde, por força da viagem que já durava 17 dias, o chão estava sujo com fezes. Até que, às 20h30 de 29 de abril de 1945, nasceu Eva.
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70 anos depois, Eva veio a Portugal promover o livro “Os bebés de Auschwitz” (editado pela Vogais), juntamente com a autora da obra, a jornalista e escritora britânica Wendy Holden. Além da história de Eva Clarke e da sua mãe Anka Nathan, Wendy Holden também conta a de outras duas grávidas que tiveram o mesmo destino da checa: enviadas para Auschwitz, transitaram para a mesma fábrica de Freiberg e foram finalmente levadas para o campo de concentração de Mauthausen, no norte da Áustria. Trata-se da eslovaca Priska Löwenbeinová — mãe de Hana, que nasceu na fábrica de trabalhos forçados de Freiberg — e de Rachel Friedman, cujo filho Mark veio ao mundo numa estação ferroviária na República Checa, numa paragem de 48 horas a caminho de Mauthausen.
“Estive à tua espera nos últimos 70 anos”
Não é habitual pensar-se no início de uma vida quando o cenário é de morte, mas foi precisamente esse paradoxo que, numa noite de insónia, levou Wendy Holden a tomar a decisão de escrever este livro. “Numa noite em que não conseguia dormir estava a ler um jornal canadiano na Internet, que tinha um obituário de uma mulher que tinha tido um bebé que morreu em Auschwitz”, conta a jornalista ao Observador num hotel em Lisboa. O assunto atraiu de imediato a atenção desta autora de bestsellers, que logo a seguir começou a pesquisar o assunto online. Foi aí que deu com o nome de Eva Clarke e com a sua história.
“Se a Eva vivesse na Austrália eu teria ido logo apanhar um avião para vê-la, mas ela vivia apenas a uma hora de distância de mim, em Inglaterra. Então passei um dia inteiro com ela, foi um dia muito emotivo, chorámos e rimos. E no fim perguntei-lhe se ela me daria o privilégio de escrever a história da mãe dela.”
“Tenho estado à tua espera nos últimos 70 anos”, respondeu-lhe Eva, emocionada com a proposta de Wendy. Esta, por sua vez, agradeceu-lhe a oportunidade de escrever uma história “única”. Foi aí que Eva lhe falou de Priska e Rachel e dos seus filhos, Hana e Mark.
Quando Wendy Holden começou a escrever o livro (o título original é “Born Survivors”), já nenhuma destas mães estava viva. Anka foi a última a morrer, com 96 anos, apenas seis meses antes de a escritora se encontrar com a sua filha. Por isso, diz que o processo de pesquisa para o livro foi como “ciência forense”. Viajou para todos os locais por onde estas mulheres passaram, de maneira a escrever sobre as suas vidas antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, falou com testemunhas daquela altura e vasculhou arquivos de museus referentes ao Holocausto.
“Os bebés de Auschwitz” assume uma estrutura tríptica, em que a autora conta, cada uma a seu tempo, a história de Priska, Rachel e Anka. Estas, que nunca se conheceram, além de terem partilhado o mesmo percurso depois de chegarem a Auschwitz, também tinham uma característica em comum, quando a palavra “Holocausto” ainda não tinha significado: não sabiam, nem podiam adivinhar, aquilo que as aguardava quando Adolf Hitler começou a expandir o domínio da Alemanha Nazi pela Europa.
O otimismo antes do horror
Já com a guerra em curso, as três jovens judias mantinham-se otimistas — e, de certa forma, dentro da ingenuidade própria da idade. Com os horrores do Holocausto ainda encobertos (só depois da queda de Hitler é que a verdadeira dimensão do genocídio se tornou conhecida), em 1944, quando ainda vivia em Bratislava, a capital da Eslováquia, Priska não acreditava nas histórias que ouvia de judeus que eram deportados para Leste. “No seu grupo de amigos, a impressão geral era a de que, tais histórias, ou eram delírios de homens ensandecidos à conta do aprisionamento a que haviam sido submetidos, ou eram exageros da propaganda antinazi.”
Rachel, que era de uma família abastada e que, por isso, tinha como fugir da Polónia enquanto era tempo, não o fez. “A família pensava que, mesmo que a influência de Hitler se estendesse tanto que chegasse à Polónia, só os judeus religiosos seriam afetados, o que não aconteceria a pessoas integradas e ricas como eles.”
E Anka recusava acreditar “que o Chanceler alemão com o bigode ridículo […] iria afetar diretamente a sua vida dourada”. Por isso, em 1944, quando já vivia num gueto para judeus na República Checa e depois de ter perdido um filho com poucas semanas de vida, decidiu engravidar. “Já aqui estamos há três anos… já não pode durar muito mais”, disse ao marido na altura.
O encontro com o Anjo da Morte
Para qualquer uma das três, o pior ainda estava para vir. Ao longo do outono de 1944, acabaram por ser obrigadas a entrar em comboios que só pararam em Auschwitz, na Polónia. Lá chegadas, foram examinadas pelo médico Josef Mengele, conhecido como “Anjo da Morte”, que era responsável por determinar quais prisioneiros seriam usados para trabalhos forçados e quais é que seriam imediatamente gaseados até à morte. “Bom dia, bela senhora. Está grávida?”, perguntava a todas as mulheres que lhe passavam pela frente. De seguida, apertava-lhes os seios para ver se tinham leite. Se fosse esse o caso, a mulher seria enviada para uma câmara de gás. Uma a uma, Priska, Rachel e Anka mentiram ao “Anjo da Morte” para poderem salvar as suas vidas e a dos seus filhos.
Da mesma forma que as três mulheres partilhavam o mesmo otimismo antes de as suas vidas mudarem, também foram bafejadas pela sorte — se é que tal pode ser dito de alguém que passou pelos terror do nazismo. À entrada de Auschwitz, eram atribuídas peças de vestuário sem critério a cada prisioneiro. Felizmente para as três grávidas, calharam-lhes peças de roupa demasiado largas para os seus corpos — algo que, à medida que as barrigas foram crescendo, lhes permitiu esconderem a gravidez.
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Além de sorte, sublinha Wendy Holden, estas mulheres conseguiram sobreviver graças à ajuda de pessoas próximas, mas também de desconhecidos. Uma dessas ocasiões — e talvez aquela em que a autora melhor conseguiu relembrar um momento de “humanidade no meio da desumanidade” — deu-se quando iam no comboio a caminho de Mauthausen, já quando a derrota alemã parecia certa. Quando passaram por Horní Briza, uma aldeia na República Checa, o chefe de estação, ao ver o estado em que os prisioneiros judeus estavam, desobedeceu às ordens de um comandante nazi e arranjou maneira de alimentar todos os tripulantes. Da noite para o dia, foram cozidos 3 mil pães e foram feitas quantidades enormes de sopa de batata. Estiveram lá parados 48 horas. Durante esse tempo, Priska deu à luz. E Anka recebeu um copo de leite que, nas palavras de Wendy Holden, “provavelmente salvou-lhe a vida e sem dúvida salvou a da Eva”.
Depois, seguiram para Mauthausen. Era o último esforço dos nazis — conscientes de que a guerra estava perdida, tentavam levar até às últimas consequências o extermínio de judeus e de outros grupos étnicos, religiosos e políticos mal vistos pelo III Reich. A 5 de maio, já com as tropas das SS em fuga, o campo de concentração de Mauthausen foi libertado pela 11ª divisão do exército dos Estados Unidos da América.
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“Eu nasci aqui!”
Eva só voltou ao campo de concentração onde nasceu quando já tinha a sua própria família. A bordo de uma autocaravana, Eva, o marido e os dois filhos (na altura com cinco e oito anos) planearam uma viagem entre o Reino Unido e Itália. Pelo caminho, calhou passarem pela Áustria. “Temos de ir a Mauthausen”, disse Eva ao marido. Antes de lá chegarem, teve de explicar aos filhos para onde é que iam e o que aquele local significava. Na altura, falou de uma prisão, onde que a “vovó” era guardada por soldados alemães. Nick, o mais novo, perguntou-lhe, como que assustado: “Mãe, isso quer dizer que a avó era dos maus?”. “Não…”, respondeu-lhe.
À chegada, Eva soube que antigos prisioneiros do campo de Mauthausen e respetivos familiares podiam entrar de graça. Assim, no pouco alemão que sabe, dirigiu-se ao homem da bilheteira: “Ich bin hier geboren!”. Eu nasci aqui!
O funcionário não acreditou em Eva, apesar de ela continuar a insistir na veracidade da sua história. Quando já estava lavada em lágrimas, foi a vez do seu marido — que fala melhor alemão — tentar convencê-lo. O funcionário continuou a não acreditar na história que lhe era contada, mas, perante a insistência, deixou-os entrar sem pagarem bilhete. Por fim, Eva voltou ao sítio onde nasceu a 29 de abril de 1945. Nessa altura, chorou.
Desde essa primeira visita, Eva voltou a Mauthausen com a mãe várias vezes e dedicou a sua vida profissional à Holocaust Educational Trust, uma organização concentrada em ensinar às crianças em idade escolar a história do Holocausto. Além de fazer palestras em escolas, Eva também faz visitas guiadas em Auschwitz com estudantes britânicos. Já a sua mãe, nunca foi capaz de voltar ao campo onde foi examinada por Josef Mengele — o facto de lá ter morrido toda a sua família próxima foi sempre um trauma enorme, demasiado grande para ser revisitado.
Mesmo assim, além do otimismo, Anka não perdeu o sentido de humor. Uma vez, Eva disse-lhe que ia voltar a Auschwitz — nessa altura já lá tinha feito tantas visitas que já era difícil saber quantas tinham sido, ao certo.
“Mas porque é que vais lá outra vez?”, perguntou-lhe a mãe. “Bem, é o meu trabalho, espero retribuir com algo”, retorquiu. Perante esta resposta, Anka, de forma bem humorada, disse-lhe: “Bem, a mim chegou-me ir lá uma vez”.