Deu entrada no Tribunal Central de Instrução Criminal (para subir ao Tribunal da Relação de Lisboa) um novo recurso da defesa de António Figueiredo para tentar revogar a prisão preventiva do ex-presidente do Instituto de Registos e do Notariado. Figueiredo é apontado pela investigação como o cérebro da rede dos Vistos Gold – o processo em que o ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, também está envolvido e no âmbito do qual foi constituído arguido por suspeitas da prática dos crimes de tráfico de influência e de prevaricação. Macedo, como o Observador antecipou, não foi preso preventivamente e foi sujeito à medida de coação mínima de Termo de Identidade e Residência.

A prisão preventiva de Figueiredo foi renovada em agosto pelo juiz Carlos Alexandre. E trata-se agora do quinto recurso com o mesmo objetivo, sendo que a defesa de Figueiredo, patrocinada pelo advogado Rui Patrício, invoca os arquivamentos no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de dois processos conexos com o caso Vistos Gold para tentar derrubar os argumentos do Ministério Público (MP) e do juíz instrução criminal de perigo de pertubação de inquérito que está na origem da sua prisão preventiva. O MP, com a concordância de Carlos Alexandre, invoca igualmente perigo de fuga – o que a defesa também tenta refutar.

O centro do recurso, a que o Observador teve acesso, reside nos arquivamentos de uma das situações mais mediáticas do caso Vistos Gold: as suspeitas que o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) entendia que existam contra os desembargadores Vaz das Neves, Antero Luís, Horácio Pinto e o procurador-geral adjunto Júlio Pereira.

Como se tratavam de magistrados de tribunais superiores, a procuradora Susana Figueiredo estava legalmente impedida de investigá-los e foi obrigada a extrair certidões das situações para os serviços do MP no STJ.

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Para a defesa de António Figueiredo, este “está em prisão preventiva” desde 18 de Novembro de 2014 pela suspeita dos crimes de corrupção, tráfico de influências e de abuso de poder “essencialmente porque poderia via SIS – Serviço de Informações de Segurança – ou via Relação de Lisboa (via pessoas de um e de outro) influenciar ou perturbar o inquérito. Foi isto que, essencialmente, baseou a decisão de novembro do ano passado”, lê-se no texto do recurso a que o Observador teve acesso. Ora, alega o advogado Rui Patrício, tendo as certidões sido arquivadas por o MP no STJ entender que são infundadas, cai por terra o perigo de pertubação de inquérito. Além do mais, alega o causídico, a “exponencial mediatização” de “um dos mais polémicos processos de inquérito que Portugal já presenciou” “inibe totalmente qualquer tentativa quer do arguido, quer de terceiros de pertubar o inquérito”.

A defesa de Figueiredo alega que a “exponencial mediatização” de “um dos mais polémicos processos de inquérito que Portugal já presenciou” “inibe totalmente qualquer tentativa quer do arguido, quer de terceiros de pertubar o inquérito”.

Rui Patrício pretende que seja revogada a prisão preventiva ou, em alternativa, que a Relação de Lisboa aplique medida de coação menos gravosa como a prisão domiciliária. Contactado pelo Observador, Rui Patrício recusou-se a fazer comentários. “Não pretendo fazer quaisquer comentários, nem acerca do que já escrevi no processo, nem acerca de tudo o mais”, afirmou.

Recorde-se que está ainda pendente na Relação de Lisboa um recurso relacionado com a renovação de maio da prisão preventiva de Figueiredo.

O caso mirandês

O primeiro dos casos arquivados no STJ está relacionado apenas com Vaz das Neves (presidente do Tribunal da Relação de Lisboa). No mesmo estavam em causas suspeitas de ter sido firmado entre Figueiredo e Vaz das Neves um “pacto de ilícito criminal (…) em trocas de vantagens de natureza imaterial”, segundo o DCIAP. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), contudo, não vislumbrou nenhum indício da prática de qualquer crime e arquivou o caso no passado dia 10 de Abril.

Em causa estava essencialmente uma escuta telefónica realizada no dia 2 de Setembro de 2014, e revelada em primeira mão pelo jornal i a 7 de Abril, que detecta o momento em que António Figueiredo manifesta a Vaz das Neves o receio de estar sob investigação e  sob escuta das autoridades judiciais, recorrendo, segundo o DCIAP, à ajuda do desembargador. Ao que o presidente da Relação de Lisboa responde: “Mas tudo o que ‘soutor’ entenda que possa ser útil, porque eu conheço o ‘soutor’, estou totalmente disponível para tudo”.

Segundo o despacho de arquivamento, a que o Observador teve acesso e que já tinha sido noticiado pelo Público em abril, o procurador-geral adjunto que apreciou o caso no STJ entendeu, depois de ouvir Vaz das Neves e Figueiredo, que a conversa em causa ” não assume qualquer relevância deontológica e muito menos de índole criminal”. Isto porque a primeira parte da conversa telefónica entre os dois versou sobre “a viabilidade do registo de uma criança com um nome na língua mirandesa” – pedido de viabilidade esse que Vaz das Neves tinha pedido anteriormente a Figueiredo. Segundo o procurador-geral adjunto que investigou o caso, acaba por ser este o contexto que determina toda a disponibilidade manifestada pelo presidente da Relação de Lisboa – até porque este manifestou “surpresa” quando foi confrontado com as investigações de que Figueiredo estaria a ser alvo. “É normal que o sr. desembargador, enquanto vice-presidente da associação portuguesa de língua mirandesa, se mostrasse agradecido pela atenção dispensada na resolução da questão colocada. E, neste contexto, sem cuidar de se tecer qualquer comentario sobre a forma de expressão, percebe-se e aceita-se a manifestaçao da solidariedade a pessoa tida, até então, por impoluta”, lê-se no despacho de arquivamento.

O caso dos espiões e dos interesses imobiliários

Já o segundo caso, arquivado a 1 de junho e noticiado pouco depois pelo Público e pelo Sol, dizia respeito as suspeitas dos crimes de favorecimento pessoal por parte dos desembargadores Antero Luís (ex-director do Serviço de Informações de Segurança e que também foi secretário-geral de Segurança Interna) e Horácio Pinto (que substituiu Antero como director do SIS) e do procurador-geral adjunto Júlio Pereira (secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa). Antero Luís era igualmente suspeito de corrupção devido a alegados negócios imobiliários.

Este caso envolvia situações distintas. A primeira, relacionada com o crime de favorecimento pessoal, dizia respeito à deteção de escutas ambientais no gabinete de António Figueiredo por parte do SIS por determinação do desembargador Horácio Pinto quando o então presidente do IRN estava sob investigação. Essa detecção é denominada pelos espiões por “varrimento” ou “limpeza electrónica” e tem como objectivo perceber se determinado espaço fechado é seguro em termos operacionais – isto é, se qualquer pessoa presente nesse espaço pode falar à vontade.

Este “varrimento/limpeza electrónica”, segundo a defesa de António Figueiredo, contudo, foi considerado legal pelo Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações – matéria que pode ser juridicamente relevante para o sucesso do recurso.

Ouvido pelo procurador-geral adjunto encarregue da investigação, Horácio Pinto confirmou o “varrimento” (detectado pela Polícia Judiciária no dia 27/02/2014) mas afirmou que o mesmo nasceu de um contexto operacional do SIS – e não de qualquer intenção de tentar perceber se António Figueiredo estava a ser investigado pelas autoridades judiciais.

O desembargador explicou que o SIS e o IRN tinham um protocolo porque o instituto que dirige todos os serviços de registo civil, predial e comercial era “o local onde se encontravam depositadas as identidades alternativas utilizadas pelo serviço que à data dirigia e a que muitas vezes e viam obrigados a recorrer para conseguir elementos necessários para o bom funcionamento do próprio serviço, de grande importância para a segurança nacional”. Isto é, o SIS criava (e cria) identidades e empresas falsas para os seus agentes com a cobertura do IRN – uma prática normal por parte dos serviços de informações ocidentais em nome da respectiva segurança nacional.

O desembargador explicou que o SIS e o IRN tinham um protocolo porque o instituto que dirige todos os serviços de registo civil, predial e comercial era “o local onde se encontravam depositadas as identidades alternativas utilizadas pelo serviço que à data dirigia e a que muitas vezes se viam obrigados a recorrer para conseguir elementos necessários para o bom funcionamento do próprio serviço, de grande importância para a segurança nacional”, lê-se no despacho de arquivamento a que o Observador teve acesso. Isto é, o SIS criava (e cria) identidades e empresas falsas para os seus agentes com a cobertura do IRN – uma prática normal por parte dos serviços de informações ocidentais em nome da respetiva segurança nacional.

Foi nesse contexto que Horácio Pinto alertou o então presidente do IRN para os “perigos que corria e da devassa que poderia estar a ocorrer por interferências estrangeiras no domínio de acções de espionagem, e a partir dessa data as relações entre ambos intensificaram-se”. O desembargador admitiu “um varrimento eletrónico no qual esteve presente com mais três elementos da área técnica do SIS” para averiguar a existência de escutas ambientais mas garantiu que não tentou detectar escutas telefónicas ou vigilância informática. Contudo, lê-se no despacho de arquivamento, “nada mais pode acrescentar uma vez que se trata de matéria classificada”.

Já Júlio Pereira confirmou que teve conhecimento do mesmo varrimento através da imprensa e que, de imediato, instou Horácio Pinto a esclarecer a matéria. Segundo o secretário-geral do SIRP, o então responsável pelo SIS afirmou que o procedimento estava relacionado com suspeitas de espionagem estrangeira que lhe tinham sido relatadas por António Figueiredo. O que Pereira considerou um “procedimento normal” face à cobertura operacional que o SIS dá ao IRN. Por outro lado, acrescentou Pereira, estava em curso desde finais de 2012 uma operação de grande sensibilidade que tinha como epicentro o IRN, mas cuja natureza não revelou por se tratar de matéria classificada.

Antero Luís afirmou ainda ao MP no STJ que Figueiredo, Horácio e ele próprio estudaram a viabilidade de um projecto empresarial em Angola que lhe foi proposto pelo ex-presidente do IRN via um cidadão angolano (Eliseu Bomba) que trabalhava para o Ministério da Justiça de Angola. “Nessas circunstâncias, e caso o dr. António Figueiredo fosse para Angola, quer o depoente (Antero Luís), quer Horácio Pinto se disponibilizaram para entrar nesse projecto, pedindo uma licença sem vencimento e saindo da magistratura. No entanto, em março ou abril, após o dr. António Figueiredo regressar de uma viagem a Angola, aquele disse-lhe que para esquecer esse projecto pois nunca viria a luz do dia”, escreveu o procurador-geral adjunto que investigou o caso, citando o ex-secretário-geral de Segurança Interna.

Júlio Pereira, contudo, diz que “advertiu Horácio Pinto” porque este o deveria ter informado previamente dessa acção para que o secretário-geral do SIRP ponderasse a necessidade de um contacto prévio com o Ministério Público ou com a Polícia Judiciária”, lê-se no despacho de arquivamento do STJ.

O procurador-geral adjunto aceitou estas explicações e concluíu que as suspeitas de favorecimento a António Figueiredo eram infundadas. O mesmo aconteceu com a alegada participação de Antero Luís em negócios imobiliários com empresários chineses que envolveriam os terrenos da Feira Popular e um imóvel em Leiria avaliado em cerca de cinco milhões de euros.

Antero Luís afirmou ainda ao MP no STJ que Figueiredo, Horácio e ele próprio estudaram a viabilidade de um projecto empresarial em Angola que lhe foi proposto pelo ex-presidente do IRN via um cidadão angolano (Eliseu Bomba) que trabalhava para o Ministério da Justiça de Angola. “Nessas circunstâncias, e caso o dr. António Figueiredo fosse para Angola, quer o depoente (Antero Luís), quer Horácio Pinto se disponibilizaram para entrar nesse projecto, pedindo uma licença sem vencimento e saindo da magistratura. No entanto, em março ou abril, após o dr. António Figueiredo regressar de uma viagem a Angola, aquele disse-lhe que para esquecer esse projecto pois nunca viria a luz do dia”, escreveu o procurador-geral adjunto que investigou o caso, citando o ex-secretário-geral de Segurança Interna.