O tempo está cinzento e chove. Uma árvore derrubada na estrada provoca o caos. Filas e filas de carros parados e a buzinar. No meio do trânsito está uma criança a caminho da escola. Passa por entre os carros e chega até à árvore. Debaixo de chuva torrencial, o pequeno homem de meio metro começa a empurrar a árvore. Ao verem o menino na chuva, outras crianças seguem o exemplo e atrás deles forma-se uma multidão. Finalmente a estrada é desimpedida, o sol brilha e a vida volta à normalidade. Um exemplo de que a união faz a força e de que se todos nos unirmos por uma causa é de facto possível mudar o mundo.

Este foi o exemplo que Margarida Pinto Correia trouxe para a conversa do Observador dedicada à cidadania. Um exemplo motivador para falar das “ondas de impacto”.

“Aquilo que fazemos tem impacto nos outros. Mesmo naqueles dias maus em que só queremos estar fechadinhos na concha, mesmo nesses momentos em que não queremos fazer nada, estamos a ter enorme impacto nos outros. Quando alguém olha para nós na rua e não olhamos temos impacto. Somos todos pessoas”, relembra Margarida Pinto Correia, jornalista, antiga diretora executiva de Fundação Gil e agora diretora na Fundação EDP para a Inovação Social.

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Junta à conversa sobre cidadania um dos temas que está na ordem do dia: a crise dos refugiados na Europa. “Em Portugal assiste-se em câmara lenta. Estamos a entrar naquela coisa extraordinariamente horrível do ‘ainda bem que não é cá’, como se o cá fosse longe”. O que se “está a passar no mundo”, considera, “é uma fase migratória que não vai parar e que vai mudar tudo. O mundo que está nos livros e na internet nunca mais voltará a ser o mesmo. Esta migração é transformadora”.

O conceito de ondas de impacto vai buscá-lo à astrofísica para colocar em perspetiva a nossa dimensão: “Tudo é maior do que nós”. E neste universo imenso, sublinha Margarida Pinto Correia, não nos devemos esquecer que “não podemos evitar ser cidadãos. Ninguém vive isolado do mundo”.

E é por acreditar que é possível mudar o mundo que Isabel Jonet decidiu, há 23 anos, ser voluntária profissional. Ajudou a alimentar uma ideia e a “mobilizar”. O Banco Alimentar “é a mobilização para a participação, para que jovens e menos jovens queiram participar e intervir”.

Isabel Jonet recusa a ideia de identificar o Banco Alimentar com ajuda: “Não estou lá porque quero ajudar. A grande questão não é querer ajudar, é querer participar, porque se os outros viverem melhor, eu vivo melhor, porque sou co-responsável pelo bem comum”.

Inundar os partidos de gente? É uma ideia

Querer fazer parte e contribuir para mudar as coisas também levou André Couto a candidatar-se a presidente da junta de Campolide, em 2009. Achou que ser cidadão “era sair do sofá” e fazer mais do que criticar os políticos. Se calhar a culpa não é só dos políticos, mas de todos os cidadãos “que não se envolvem na cidadania política. Ficam no sofá e deixam que partidos sejam geridos pelos outros”.

Às dezenas de pessoas na plateia, André Couto, o presidente da junta, lançou um desafio: “O que aconteceria se se fossem filiar todos em massa nas estruturas partidárias que criticam ou que vos são mais próximas? Como é que acham que essas estruturas reagiriam? Ficariam as mesmas ou devagarinho, as boas pessoas fariam com que certos dirigentes se tornassem melhores?”.

O desafio foi lançado por quem está na política como “cidadão comum” que vive “dentro de uma estrutura partidária (PS), com qualidades e defeitos” e que acredita profundamente que “quanto mais gente se juntar aos partidos, mais eles ganharão qualidade”.

E como é que se resolve o “divórcio entre eleitos e eleitores”? Margarida Balseiro Lopes, da JSD, acredita que de facto é possível e necessário que os “partidos vão ao encontro da sociedade civil”. “Muitas vezes os políticos falam politiquês, muitas pessoas nem percebem os debates. Isso afasta. Acho que seria interessante falar a mesma linguagem. Sairmos das sedes dos partidos. Se as pessoas não vêm ter connosco temos nós de ir ter com elas”, acredita esta jovem de 25 anos, há 10 numa jota.

Era importante também que se quebrasse o rótulo negativo de que quem está na política é por interesse. “Isso afasta as pessoas válidas, que não se envolvem porque não querem ficar com o rótulo. É preciso mostrar que não é assim pelo exemplo”, explica esta jovem que tem uma carreira como consultora fiscal numa das multinacionais mais conhecidas do mundo. Recorda as palavras do “Papa Francisco, que disse acreditar nos jovens políticos porque não tinham vícios dos mais velhos”. “É por isso que acredito que vale a pena fazer política”, diz Margarida Balseiro Lopes.

Perceber o sentido da vida

O princípio de base para a cidadania é talvez questionarmo-nos o sobre aquilo que estamos dispostos a dar. Há quem dê muito, quem dê pouco e quem se dê “até cair para o lado”. O padre Arsénio Isidoro, à frente da paróquia da Ramada, em Odivelas, gosta de pensar “que somos todos únicos”. Na família e na aldeia aprendeu “a gostar dos outros, a dar-se aos outros”.

“O meu prior tinha uma alegria enorme em ajudar as pessoas”, conta. Isso fê-lo questionar o sentido da vida: “Levou-me a procurar o que Jesus queria de mim”.

E nesta busca pelo que queria da vida e pelo que a vida queria dele, foi parar ao Brasil em missão, em 1998, com amigos universitários. A zona onde ficaram eram muito pobre. “Estive a conversar com uma mãe de seis filhos e ela convidou-me para almoçar. Ela tinha estado a chorar porque não tinha dinheiro para comprar comida. Quando cheguei a casa dela havia um prato na mesa e perguntei: vamos almoçar? Eles fizeram questão e serviram-me a mim, um feijão com arroz ótimo e com um cheirinho a carne. Voltei para casa a chorar. Percebi o que era o sentido da vida e de dar tudo o que sou aos outros. Não tenho pretensão de ser Jesus, mas quero ser como ele e dar como ele deu.”

Depois veio para Portugal e, conta a rir, “fizeram de mim padre, nunca quis ser padre na vida”. Deixou de ser o Seninho da pequena aldeia para passar a ser o senhor padre Seninho.

Veio da aldeia para Lisboa e há 10 anos que está na Ramada. “A Ramada tem um centro comunitário e eu fui levado pelo ‘comboio’ de ajudar o outro. O respeito pelo outro levam-me a organizar atividades para aqueles que precisam”. É da vontade que nasce a obra e da colaboração de toda a comunidade. Hoje o centro comunitário paroquial tem 104 funcionários, mais de mil utentes, e 17 valências. “É uma grande responsabilidade, mas respondemos às necessidades da comunidade”.

Este conceito de comunidade e de identidade são destacados por Filipe Santos, presidente do Portugal Inovação Social e professor universitário, para falar daquilo que entende que deve ser a cidadania.

“Se queremos uma cidadania mais ativa, devíamos evoluir para um conceito mais orientado para a identidade, com aquilo que somos, para aquilo que dá sentido à nossa vida. Seja uma junta de freguesia ou Jesus, seja o que for que nos identifica e que nos apaixona”.

Porque, quando fazemos as coisas por paixão, defende Filipe Santos, “nada nos pára”. É essa paixão que “nos leva a agir na sociedade”. Sentirmo-nos identificados, por um lado, e responsáveis, por outro.

E conta que existe um vasto “conjunto de cidadãos que se identifica com os outros, identifica problemas que lhes dizem alguma coisa e querem intervir, atacar a causa desses problemas e encontrar soluções”. São eles os empreendedores sociais.

Empreendedores sociais que criaram por exemplo o SPEAK, um projeto de inclusão de imigrantes através do ensino da língua, ou o Color Add, que criou um código de cores para daltónicos e que permite a inclusão pela cor, ou ainda o Mundo a Sorrir, uma rede de cuidados de saúde oral praticamente gratuita.

“O grande potencial destes agentes transformadores é que dão o seu tempo e criam soluções inovadoras, que envolvem as pessoas”, afirma Filipe Santos. É disto que se trata quando se fala de cidadania: “Identidade, responsabilidade, detetar problemas, assumir a nossa responsabilidade e resolver esses problemas”.

E você, o que fez hoje para mudar o mundo?