1. Cortar ainda mais ou criar emprego?
As políticas recessivas do memorando tiveram um impacto claro: a procura e o investimento caíram a pique e com elas o desemprego disparou, atenuado apenas pela imigração. O governo dedicou-se então a disfarçar os números em vez de lidar com a realidade. Esbanja recursos públicos a financiar estágios e formações em empreendorismo em vez de os utilizar na redinamização da economia e generaliza os contratos emprego-inserção, um regime de trabalho escravo em que os trabalhadores são pagos com o seu próprio dinheiro, o dinheiro das suas contribuições.
A ironia desta escolha é que todos os cortes e aumentos de impostos não trouxeram saúde às contas públicas. O memorando estabelecia metas para o PIB, o défice e a dívida para cada ano. O governo falhou-as todas, sem excepção. Perante essa evidência, reviu as metas no final de cada ano, para poder afirmar que as tinha cumprido. 4 anos depois, a dívida teve o seu maior aumento de sempre. É fácil perceber porquê: uma política que destrói emprego está a minar toda a receita pública: os trabalhadores pagam menos IRS e contribuições para a Segurança social porque têm salários mais baixos ou perderam o emprego, a receita de IVA colapsa com a quebra do consumo e o IRC sofre com o aumento das empresas que declaram prejuízos ou abrem falência. Acresce que com o aumento do desemprego aumenta as necessidades de despesa social. A política de austeridade derrotou-se a si própria. Para resolver de forma sustentável o problema das contas públicas, é preciso combater o maior fator de desperdício na nossa economia: a existência de um milhão de portugueses em idade ativa no desemprego ou em sub-emprego.
2. Pagar o Estado social ou pagar com o Estado social?
O Estado social é um custo ou um recurso? O discurso da direita sempre foi o de que a austeridade era necessária para “pagar o Estado social”. Também o PS justificou frequentemente a necessidade de cortar no Estado social para salvar o Estado social. Ao longo dos últimos anos, o Governo transferiu recursos do SNS e da escola pública e agora propõe-se fazer o mesmo na segurança social através do plafonamento.
O erro desta análise é simples: o Estado social poupa dinheiro. O Serviço Nacional de Saúde, a Escola pública e a segurança social públicos são as formas mais eficientes e seguras de dar resposta a direitos constitucionalmente consagrados. A prová-lo estão os índices de qualidade de vida nos países que construíram Estados sociais fortes e a sua degradação onde as políticas de privatização foram implementadas. Claro que existe uma alternativa, que é respeitar esses direitos constitucionais a quem puder pagar por eles, deixando aos restantes a alternativa caritativa. É exatamente essa a escolha do governo e da direita, a escolha que é preciso derrotar.
Mas há ainda um fator adicional: ao fornecer serviços públicos de primeira necessidade de forma universal, o Estado liberta os parcos rendimentos do trabalho para outros consumos. É por isso que a saúde ou a educação públicas são vistas, e bem, como salário indireto. Se os cidadãos não tivessem acesso a estes serviços e não tivessem rendimentos para os pagar (como não tem a esmagadora maioria dos portugueses), teríamos uma crise humanitária em Portugal.
3. Esmifrar ou redistribuir?
Finalmente, há ainda uma escolha a fazer sobre quem suporta os custos do ajustamento. Durante os últimos 4 anos, a desigualdade não podia ser mais gritante. Enquanto quem trabalha ou trabalhou uma vida inteira foi atacado de todas as formas, através de cortes nos salários, nas pensões ou no Estado social e de aumentos nos impostos diretos e indiretos, a Direita e o PS entenderam-se para um acordo do IRC, que reduz drasticamente a tributação efetiva das empresas, em particular das empresas multinacionais e do setor financeiro, quer através da redução das taxas, quer através da alteração dos critérios de definição dos resultados tributáveis.
Uma política que inverta esta injustiça gritante tem de devolver salários, pensões e prestações sociais, mas tem também de mobilizar recursos onde estes efetivamente se encontram. Uma reforma fiscal corajosa é um imperativo de justiça social, mas é também uma política da mais elementar racionalidade económica. Uma reforma fiscal serve tanto para gerar recursos para políticas de investimento público que relancem a economia como para devolver rendimento aos setores mais desfavorecidos que são, como é sabido quem consome a maior parte (ou a totalidade do seu rendimento), aumentando a procura disponível para as nossas empresas.
O dilema europeu: crescimento ou equilíbrio externo
Um dos silêncios quase ensurdecedores das campanhas do bloco central é a Zona Euro e as consequências da inserção de uma economia como a portuguesa numa zona monetária disfuncional que gera por definição desequilíbrios entre as economias mais fortes e as economias periféricas. Foram esses desequilíbrios, e não o estilo de vida luxuoso dos portugueses, que nos trouxeram à situação atual. Não admira, portanto, que a direita celebre o reequilíbrio da balança externa. Só há um problema: esse equilíbrio depende do esmagamento das importações através da compressão do mercado interno. Falando mais claro, depende de termos 20% de desemprego, o que torna o equilíbrio das contas públicas inviável. É esse o silêncio da direita. O silêncio do PS é outro. É dizer que é possível ter taxas elevadíssimas de crescimento (o irrealismo destas previsões é outro problema) sem provocar um aumento das importações e um novo desequilíbrio. O nosso problema no Euro é um problema estrutural e precisa de soluções estruturais.
A direita festeja o empobrecimento e enaltece as “reformas”. O PS aqui tem esperança numa mudança na Europa e não sabe o que fará se ela não vier. Entretanto, ambos escolhem a obediência. Nenhum se atreve a pôr em causa as regras que estão a destruir a nossa economia. Isso significa que os seus programas, os seus planos, os seus orçamentos, intenções à parte, serão os que o Sr. Schäuble entender.
Um caminho com sentido
Nenhuma força pode concorrer a estas eleições prometendo facilidades. Os cidadãos já são, aliás, alérgicos a esse tipo de discurso, sobretudo porque se lembram de ouvir Passos Coelho dizer que não aumentaria impostos e não cortaria em nada, a não ser nas gorduras. Mas as dificuldades tem de ter um sentido e uma perspetiva de futuro e é hoje claro que a austeridade não tem sentido e não dá um futuro.
A política necessária é uma política que vai buscar recursos para a criação de emprego onde eles existem, através de uma reforma fiscal e de uma reestruturação da dívida. Dizer que se rompe com a austeridade sem defender intransigentemente estes dois objetivos é enganar os portugueses. Pode-se trabalhar sobre cenários paradisíacos mas a economia é impiedosa, como foi nos últimos 4 anos. A mobilização desses recursos implica uma política anti-recessão, com devolução de rendimentos e investimento público, o que só pode ser feito recusando o Tratado Orçamental como já fizeram outros países da UE.
Estas duas questões exigem um confronto com as políticas vigente na Zona Euro que não pode ser adiado. Esperar que tudo mude na Europa não é solução, é ilusão. Uma ilusão que pode bem levar à destruição da nossa economia e da nossa democracia. Defender o nosso país, defender os direitos de todos os que aqui vivem, trabalham ou trabalharam exige resgatar a nossa soberania democrática, assumindo e preparando todas as consequências que esse rumo possa ter. Essa é a escolha responsável.
* José Gusmão, economista, Comissão Política do Bloco de Esquerda
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