Como e quando nasceu o vinho do Porto?

“Ninguém sabe exatamente quando e como começou a moderna forma de produzir o vinho do Porto.” As palavras são de Manuel de Novaes Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, para quem não há uma verdade, mas sim muitas. “No vinho o importante é contar histórias.” E, de facto, o que não faltam são histórias, como aquela que alega que o vinho do Porto nasceu de um acidente, durante as longas viagens feitas entre Portugal e mercados como a Inglaterra no século XVII — aos vinhos seriam adicionadas doses de aguardente para que estes pudessem resistir às travessias marítimas.

Porque é que os vinhos do Porto são exclusivos do Douro?

A 10 de setembro de 1756 nascia a primeira região demarcada e regulamentada do mundo, o Alto Douro Vinhateiro — não é por acaso que, desde 2014, a data foi escolhida para celebrar o dia do vinho do Porto. A decisão surgiu a mando do Marquês de Pombal e na sequência de uma grande crise: as fraudes e o excesso de produção comprometiam, cada vez mais, a qualidade do vinho e a sua reputação. A medida tida como visionária assinalou a criação do conceito “Denominação de Origem”. Mas se o Douro foi demarcado há mais de 200 anos, o mesmo não se pode dizer do vinho, cuja produção na região data antes da ocupação romana e é, por isso, ancestral.

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Mas o que é que o Douro tem de tão especial?

Atualmente, a região demarcada estende-se por cerca de 250 mil hectares, sendo que 44 mil são dominados por vinhas e 32 mil estão autorizados a produzir vinho do Porto. Em terra de socalcos encontram-se mais de 100 castas diferentes aptas à produção do respetivo néctar, um número ainda mais significativo se se considerar que no país inteiro contam-se apenas 250 variedades.

E como se sabe quais as vinhas de qualidade? No final da década de 1940, o engenheiro Moreira da Fonseca, em tempos também ele presidente do IVDP, criou um método de pontuação dos terrenos. Considerando um total de 12 critérios, como localização, inclinação, incidência solar ou a idade da vinha, as vinhas seriam classificadas de A a I — os terrenos aptos à produção de vinho do Porto situam-se entre as letras A e F. O método, garante Manuel de Novaes Cabral, é utilizado ainda hoje.

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O Alto Douro Vinhateiro é a região demarcada e regulamentada mais antiga do mundo. © Ana Cristina Marques/Observador

O Douro, que desde 2001 é considerado Património da Humanidade pela UNESCO como “paisagem cultural evolutiva e viva”, está dividido em três sub-regiões — Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior –, cada uma com condições diferentes para a produção do néctar. Não é muito difícil de conceber que tanto a temperatura como a precipitação conseguem influenciar a forma como as videiras crescem e os cachos se desenvolvem.

Como se produz o vinho do Porto?

O vinho do Porto, cujas uvas nascem na região demarcada do Douro, é um vinho licoroso e fortificado, com uma média de álcool entre os 19 e 22 graus (com a exceção do branco leve seco, com 16,5%), além de uma vasta gama de doçuras (muito doce, doce, meio-seco, ou extra seco) e de cores (vai do retinto ao alourado claro). É na vindima — entre os meses de agosto e outubro — que todas as grandes histórias vinícolas começam, com o corte dos cachos e a apanha da uva em plenos socalcos durienses, e o Porto não é exceção. De tesoura na mão e balde por perto, as uvas são roubadas às videiras que as viram nascer.

Depois de colhidas e selecionadas, são transportadas para a adega onde, numa primeira fase, são retiradas as folhas que possam vir coladas e escolhem-se os cachos de qualidade antes de estes serem desengaçados, isto é, serem-lhes retirados os bagos. As uvas seguem para os lagares — que tradicionalmente eram de granito — onde podem ser pisadas a mando da vontade e energia do homem ou com recurso a máquinas modernas. A pisa permite esmagar as uvas de modo a que estas libertem o sumo e a polpa das peles para que, algum tempo depois, se inicie a fermentação.

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A pisa pode ser feita a mando da vontade do homem (ou da mulher). © DR

As uvas mais associadas à produção do vinho do Porto são: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinto Cão, Tinta Barroca, Tinta Amarela e Sousão (tintas); Códega, Malvasia Fina, Gouveio, Rabigato, Moscatel Galego Branco e Viosinho (brancas).

Tal como explica o escanção, consultor de vinhos e formador Sérgio Antunes, da Wine Service For You, a fermentação do vinho do Porto, que em média dura dois a quatro dias, é interrompida quando se adiciona aguardente de origem vitícola (benefício ou aguardentação). É o enólogo que decide a duração da fermentação, tendo em mente, desde o início, o perfil de vinho pretendido. “As leveduras são interrompidas a meio do trabalho, quando estão a transformar o açúcar em álcool, libertando gás natural (não adicionado)”, continua. Atualmente, e desde 2012, a adição de aguardente oscila entre 60 a 120 litros por pipa (550 litros), palavra do IVDP.

Mas como é que há vinhos do Porto que aguentam tantos anos?

Tim Hogg, coordenador da formação em enologia na Escola Superior de Biotecnologia da Católica Porto, diz que os vinhos produzidos para envelhecer em garrafa — transformando-se, assim, em vinhos de guarda — apresentam uma maior quantidade de taninos, são mais ricos em cor e também mais fortes em termos de estrutura. O segredo, atira Hogg, está na natureza dos taninos. Posto isto, há vinhos do Porto que podem ser guardados com amor e carinho durante 40 ou 50 anos. E, sim, mesmo depois desse tempo todo ainda é possível retirar prazer dos néctares.

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Caves Sandeman. © Ana Cristina Marques/Observador

Mais: uma viagem rápida ao site do Instituto dos Vinhos do Porto e Douro revela os diferentes anos vintage. Mas o que é que o selo, se assim o pudermos chamar, significa? Manuel de Novaes Cabral apressa-se a explicar: “Quando a maior parte das empresa produtoras declaram um ano vintage [tido como um ano de excecional qualidade], a Confraria do Vinho do Porto faz uma declaração formal.” Ainda assim, o presidente do IVDP adianta que podem existir vinhos vintage todos os anos, desde que propostos como tal ao IVDP, entidade que tem como missão aceitá-los (ou não). O último ano vintage declarado data de 2011 e o mais antigo de 1756.

E um dos motivos porque, hoje em dia, é possível ter acesso a Portos com várias décadas em cima deve-se, nas palavras do escanção Sérgio Antunes, ao altruísmo de quem os produz: “Estamos a garantir que outras gerações possam provar e acompanhar a evolução da própria viticultura. É uma questão de conhecer o passado para perceber o futuro.”

Que tipos de vinho do Porto existem? 

O vinho do Porto resulta do blend de vários vinhos de um ou mais anos, processo que garante uma qualidade consistente aos néctares e que ajuda a marca a definir um estilo. Para criar um Porto é sempre preciso identificar o estilo de vinho pretendido e selecionar as uvas a serem misturadas. Tradicionalmente, os vinhos novos passam os meses de inverno no Douro e só depois são transportados para as caves de Gaia, onde o processo de maturação é continuado.

Falando em envelhecimento, os vinhos que são desenhados para manter características jovens durante mais tempo — como o Ruby ou o Porto branco — são armazenados em cascos ou tonéis de grandes dimensões, enquanto os vinhos que podem tirar maior vantagem de uma evolução mais rápida (como aqueles que dão origem aos Tawny) têm como destino cascos mais pequenos. É fácil de perceber porquê: quanto maior for a barrica, menor é a quantidade de oxigénio e mais lenta será a evolução do vinho.

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Os vinhos do Porto podem ser divididos em duas categorias consoante o tipo de envelhecimento:

Tawny
O envelhecimento é feito em madeira, em pipa. Das uvas tintas nasce um vinho cor de ouro (apesar do tom ser variável consoante a sua evolução — tinto-alourado, alourado ou alourado-claro). Estes vinhos resultam do blend de vários anos e os seus aromas lembram os frutos secos e a madeira. Existem as seguintes categorias: Tawny (vinhos sem qualidade suficiente para envelhecer muito mais e que facilmente se encontram no mercado a um preço acessível), Tawny Reserva, Tawny com Indicação de Idade, de 10, 20, 30 ou 40 anos (um Tawny de 10 anos é um blend de vinhos cujas características de prova são de um vinho com essa idade; normalmente, a idade média do lote é superior a isso) e Colheita, de um ano específico. Os vinhos deste estilo estão prontos para serem consumidos depois de engarrafados.

Ruby
Aqui, o envelhecimento já é feito em garrafa. Os Ruby, também à base de uvas tintas, correspondem a um perfil de vinhos mais jovens, naturalmente ricos e com aromas frutados muito intensos. Neste tipo de vinhos, por ordem crescente de qualidade, inserem-se as categorias Ruby (néctares que não envelhecem e que podem ser de imediato postos à venda), Reserva, Late Bottled Vintage (sem qualidade suficiente para serem declarados Vintage; são obrigatoriamente engarrafados entre o quarto e o sexto ano) e Vintage, vinhos que são engarrafados entre o segundo e terceiro ano. O Vintage e, em menor grau, o LBV envelhecem bem em garrafa.

Há enólogos que dizem que os Ruby são obra de Deus e com mão do homem, enquanto os Tawnies são obra do homem e com mão de Deus.”  Manuel de Novaes Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto

Há ainda os vinhos brancos e os rosé:

Branco
Proveniente de uvas brancas, é possível encontrar Porto branco muito seco, seco, meio seco, doce ou lágrima (muito doce) — os estilos variam consoante os períodos de envelhecimento e os diferentes graus de doçura. Alguns vinhos podem mesmo entrar nas categorias especiais (Reservas ou com Indicação de Idade), mas a grande maioria corresponde a néctares novos, com uma média de três a quatro anos. Sérgio Antunes, o escanção de serviço, esclarece que os brancos envelhecidos têm vindo a ganhar mercado e diz que, até há pouco tempo, não havia o hábito de os consumir.

Rosé
O vinho de cor rosada é obtido, segundo o IVDP, através uma maceração pouco intensa das uvas tintas, um processo durante o qual “não se promovem fenómenos de oxidação durante a sua conservação”. São vinhos que devem ser consumidos novos e que apresentam notas de cereja, framboesa e morango.

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© Ana Cristina Marques/Observador

A isso acrescenta-se a existência das categorias especiais, onde se inserem vinhos de “elevada notoriedade”, diz o IVDP. Estes podem ser: 

  1. Estilo Ruby (envelhecimento em garrafa): Porto Ruby Reserva, Porto Late Bottled Vintage (LBV), Porto Vintage (considerado por muitos a jóia da coroa dos vinhos do Porto) e Porto Single Quinta Vintage (distinguem-se por serem de um só ano e de uma só vinha);
  2.  Estilo Tawny (envelhecimento em madeira): Porto Tawny Reserva, Porto Tawny 10 anos, 20, 30 e 40 anos e Porto Colheita (Tawnies de uma só colheita, envelhecidos em cascos por um período mínimo de sete anos).

Depois de feitos, os vinhos vão logo para o mercado?

Não. Nesta fase segue-se o processo de certificação que tem como objetivo principal manter a qualidade e evitar falsificações. A responsabilidade cabe ao Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), originalmente fundado em 1933 e que atualmente ocupa um edifício onde em tempos funcionou um banco — faz parte do Ministério da Agricultura e não tem qualquer relação com as casas produtoras de vinho na região.

Por aqui passam cerca seis mil vinhos por ano para serem certificados (três mil correspondem a vinhos do Porto e outros três mil são do Douro). Todos os néctares vão aos laboratórios do instituto, uma espécie de CSI dos vinhos, bem como à câmara dos provadores, onde acontece a maior parte das rejeições — se um Porto vintage falhar na prova, uma mesma versão pode ser enviada quatro anos mais tarde para se candidatar a um LBV. O IVDP está ainda a par do volume de produção anual de cada produtor.

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Onde e como posso consumir vinho do Porto?

Habitualmente, o vinho do Porto é servido no final da refeição, em forma de aperitivo e na companhia de queijos gordos. Ainda que a sugestão não pareça de todo pouco atrativa, nos últimos tempos têm surgido propostas diferentes de fazer o queixo cair (ou tombar ligeiramente). Uma rápida pesquisa pela internet permite ficar a par de compotas, chás e biscoitos à base de ou com vinho do Porto. Há até um gin nacional — de nome Nao — que depois de destilado em terras de Sua Majestade estagia três meses em barricas de vinho do Porto.

A pedido dos novos tempos e tendências — e também como forma de fazer chegar o vinho do Porto a consumidores de uma faixa etária mais jovem — há casas e bares que optam por fazer cocktails onde a estrela é, muito a propósito, o vinho fortificado que, não raras vezes, assume o papel de embaixador de Portugal. Exemplo disso são as receitas que seguem em fotogaleria:

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Mas caso não esteja com vontade de fazer malabarismo com diferentes ingredientes, pode sempre esperar (no caso de ser lisboeta ou de viver perto da cidade) pela nona edição do Porto & Douro Wine Show, marcada para os dias 21 e 22 de novembro. O evento que traz os vinhos do Porto e do Douro a Lisboa vai ocupar o Mercado da Ribeira e promete uma agenda recheada: desde as habituais provas a showcookings e harmonizações. A iniciativa espera contar com quase meia centena de produtores, mas também com reconhecidos chefs de cozinha — afinal, o que é a comida sem vinho e vice-versa?

O Observador assistiu a um seminário do vinho do Porto a convite da Sandeman

Artigo atualizado a 8 de outubro.