O acordo que o PS está a negociar com PCP e Bloco inclui um compromisso dos socialistas que é, na prática, uma linha vermelha para que comunistas e bloquistas mantenham o apoio ao Executivo do PS durante a legislatura. Na prática, o PS garantirá aos parceiros de esquerda que, se durante o caminho forem necessárias medidas extraordinárias para corrigir o défice e atingir os objetivos europeus, essas medidas nunca vão passar por cortes em salários, pensões ou aumento de impostos – pelo menos sobre rendimentos.
O primeiro dirigente do PS a admitir essa cláusula de ouro foi Carlos César, numa entrevista na sexta-feira à RTP:
“O PCP e o BE, nas conversas que têm tido connosco, têm revelado uma compreensão exata e minuciosa das dificuldades com que o país se confronta e do caráter imprevisível da própria contratualidade política e da própria evolução da economia portuguesa. O que é essencial é que, na tomada de medidas excecionais que a qualquer momento se justifiquem, não sejam lesados os princípios essenciais que têm a ver com o rendimento das pessoas e os impostos sobre o trabalho”, afirmou o presidente e futuro líder parlamentar do PS.
Um outro dirigente socialista, contactado esta manhã pelo Observador, confirma que ficarão escritas “duas cláusulas gerais” no documento que for assinado com os dois partidos, frisando que estas implicam uma cedência de parte a parte. “Por um lado, o PCP e Bloco aceitam que podem vir a ser necessárias medidas que não estarão previstas no acordo“, por outro “o PS terá que aceitar introduzir limitações ao leque de medidas possíveis”, que são “reivindicações dos partidos que não são preponderantes nesse Governo” – mas que podem, claro, tirar-lhe o apoio decisivo para que continue a governar.
A solução? Medidas menores. E deixar o défice desviar
A questão que sobra deste princípio de acordo é, assim, o que fará um governo do PS se forem precisas novas medidas. A primeira parte da resposta é a mais simples – serão tomadas medidas que não toquem nesta regra de ouro. Mas, se essas medidas não forem suficientes, o PS propõe uma mudança de paradigma: “Como temos dito – e escrevemos no documento económico do partido -, um dos erros maiores da política orçamental destes anos foi a de cortar rendimentos sempre que havia um desvio no défice”, diz a mesma fonte da direção socialista. “É preciso limitar muito as correções que sejam feitas por essa via, até porque elas não contribuem para o cumprimento das metas”, acrescenta ainda.
A tese pode explicar-se desta forma: implementar medidas que cortem rendimentos tira dinheiro disponível à economia e acaba por travá-la. Assim, dizem os socialistas, os impostos recolhidos pelo Estado são também menores – e acabam por tornar mais difícil o cumprimento das metas.
Em síntese: “Se houver um problema, tem que se ajustar a meta do défice”, diz um dos socialistas que têm acompanhado as negociações. Isto claro, dentro das regras do Tratado Orçamental, que Costa sempre insistiu que serão respeitadas.
Na entrevista que deu à RTP, Carlos César voltou a deixar claro que o PS não prescindirá de cumprir as regras do euro, mas introduziu uma variante no discurso, que mostra que o PS vai tentar carregar menos na consolidação orçamental. Em vez de falar de um compromisso com as metas definidas, mostra “um compromisso de uma trajetória orçamental” – ou seja, de redução gradual do défice. E juntou na mesma frase isto: “…e de defesa da recuperação dos rendimentos das pessoas e moderação fiscal”.
Negociações avançam sem pressão
Com Passos indicado pelo Presidente para formar governo, o PS optou por não pressionar Bloco e PCP para fechar um acordo. As negociações prosseguem devagar e, segundo o DN desta segunda-feira, o PS ainda está a fazer contas às propostas do PCP e Bloco de Esquerda para a eliminação da sobretaxa de IRS, para o aumento do salário mínimo para 600 euros e para a redução do IVA sobre a eletricidade, que subiu em 2011 de 6% para 23%.
Como já noticiou o Observador, o objetivo é ter o acordo pronto antes de aprovada no Parlamento a moção de rejeição ao novo Governo de coligação do PSD e CDS-PP, para que nesse momento simbólico (que abrirá lugar à formação do governo de esquerda) António Costa possa mostrar que o derrube da direita não é uma coligação negativa, mas sim o ato inicial de um projeto de governo diferente.
No sábado, o secretário-geral do PCP foi muito prudente quando, numa entrevista à TVI, foi questionado sobre os termos do que está a ser negociado. Jerónimo de Sousa explicou que ainda não voltou a conversar com António Costa, fugiu a qualquer pergunta sobre medidas concretas (para não ser “desleal” para com o PS) e acrescentou que “medidas negativas” para os trabalhadores não terão nunca o apoio do partido na Assembleia. Mas as conversas estão “bem encaminhadas”, disse o líder comunista.
O que querem PCP e BE?
Para já, o que se sabe que está na mesa das negociações passa sobretudo pelo alívio de medidas de austeridade. Em pontos:
- Devolução dos salários da função pública e das pensões na íntegra (o PS propunha devolução em dois anos, PCP e BE queriam reposição imediata). Nos salários, o acordo provável é o de uma reposição a cada trimestre, ao longo de 2016;
- Eliminação da sobretaxa de IRS (o PS propunha eliminação em dois anos, PCP e BE queriam imediatamente) – é um ponto em aberto, segundo o DN desta segunda-feira;
- Criação de mais escalões de IRS (havia oito antes da troika, agora há cinco). A ideia é dar mais rendimentos às classes mais baixas e, possivelmente, aumentar a carga fiscal sobre as médias/mais altas. O PS disse na campanha que não se comprometia enquanto não tivesse mais dados, para não inviabilizar as metas traçadas com a UE;
- Aumento do salário mínimo (o valor atual é de 505 euros, PS propunha 522 e PCP e BE 600 euros). Também aqui não haverá acordo;
- Baixa do IVA da restauração (todos de acordo em baixar para a taxa intermédia de 13%);
- Baixa do IVA na eletricidade (PCP e BE querem baixar de 23% para 6%, como antes da troika, o PS nunca se comprometeu);
- Reposição das 35 horas semanais de trabalho na função pública (onde todos estão de acordo);
- Valorização da contratação coletiva;
- Reposição de feriados (também com acordo geral);
- Reforço do abono de família, subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego;
- Reversão dos processos de concessão, subconcessão e privatização, designadamente das empresas de transportes (da TAP ao Metro de Lisboa, Carris, Metro do Porto e STCP, todos eles já adjudicados a empresas privadas);
- Fim das taxas moderadoras no aborto.
De fora das exigências do BE e do PCP está a saída da NATO e a renegociação da dívida. Tanto Catarina Martins como Jerónimo de Sousa têm dito que há matérias mais prioritárias, como o alívio da austeridade, e que é nisso que devem estar focados. No BE, contudo, há quem defenda que esta lógica só é válida para um acordo para um ano e que se o acordo for para uma legislatura inteira (os quatros anos) então têm que contemplar a questão da dívida. É o que defende, por exemplo, o líder histórico do BE, Francisco Louçã.