Quando o ano acabar, e na ausência de um novo Orçamento de Estado (OE) para 2016, o que acontece a todas as medidas extraordinárias de consolidação orçamental? A interpretação mais consensual é a de que caem por terra, se não forem renovadas em leis específicas, até à aprovação do novo OE. Mas no caso da sobretaxa do IRS há quem defenda que se mantém, mesmo em regime de duodécimos. 

A sobretaxa não é a única medida extraordinária, mas é a que levanta mais dúvidas e aquela que tem maior impacto orçamental, superior a 500 milhões de euros. E na dúvida quanto ao que fazer, mas na certeza de que o problema está a caminho, o Ministério das Finanças preparou tudo para que pelo menos dois diplomas fossem apresentados na Assembleia ainda antes do primeiro Orçamento do novo Governo.

O Observador confirmou que, antes das eleições de 4 de outubro, estavam a ser preparadas leis autónomas para manter os cortes de salários no Estado (repondo apenas os 20% prometidos pela coligação para 2016), assim como a sobretaxa do IRS (embora com um peso ligeiramente menor), isto para assegurar que o Executivo não teria um problema para gerir logo a 1 de janeiro, quando o Estado entrasse em gestão por duodécimos.

As duas medidas extraordinárias têm uma importância orçamental muito relevante — a sobretaxa do IRS vale cerca de 570 milhões de euros e a reposição total dos cortes salariais na Função Pública aumentaria a despesa em mais de 600 milhões de euros. A diferença é menor no cenário previsto pelo atual governo de devolução de mais 20% dos cortes no próximo ano. 

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As dúvidas jurídicas colocam-se sobretudo em relação à continuidade da sobretaxa sem Orçamento do Estado e sem lei autónoma e foi sobre este tema que o governo pediu pareceres a fiscalistas e juristas especializados em matérias orçamentais, soube o Observador. A decisão de avançar com o processo legislativo foi tomada para garantir que as dúvidas legais não causariam qualquer acidente de percurso.

Os dois diplomas ficaram, entretanto, parados quando António Costa mostrou intenção de fazer um governo alternativo, derrubando o Governo em minoria de Passos e Portas. No entanto, este é um nó que qualquer governo terá de desatar. Seja da coligação, seja de maioria de esquerda.

A sobretaxa é um dos temas a negociar com o PCP e o Bloco num acordo para o PS governar. O programa eleitoral socialista prevê a eliminação gradual da sobretaxa até 2017, mas no atual cenário de indefinição podem acontecer várias coisas. 

  • A sobretaxa cai logo no início de 2016, pelo menos até ser aprovado o novo OE.
  • A sobretaxa mantém-se nos 3,5% até ser aprovado o Orçamento de 2016. 
  • Ou um governo liderado pelo PS terá ainda tempo, em tese, para produzir legislação especifica que clarifique a matéria no sentido que resultar da negociação com os partidos à esquerda. 

Mas se a sobretaxa do IRS tem sido assumidamente “extraordinária”, porque é que poderá manter-se em vigor depois de terminada vigência do Orçamento do Estado? O Observador pediu a opinião de dois fiscalistas que também foram secretários de Estado dos Assuntos Fiscais. E as respostas não coincidem.

Sobretaxa mantém-se

Rogério Fernandes Ferreira acha que a sobretaxa do IRS não cai no regime de duodécimos. O fiscalista remete para a lei de enquadramento orçamental, segundo a qual a vigência da Lei de Orçamento de Estado para 2015 deve ser prorrogada. As receitas previstas no orçamento de 2015 deverão poder ser cobradas no próximo ano, enquanto não produzir efeitos o novo orçamento do Estado para 2016, de acordo com as que estão previstas nos mapas orçamentais contidos na Lei do Orçamento de Estado anterior.

É certo, reconhece, que a Lei de Enquadramento Orçamental “exclui, nesta situação, das receitas que podem transitar de um ano para o outro, aquelas cuja autorização de cobrança se destinava a vigorar, apenas, até ao final do ano económico a que respeitava a Lei do Orçamento de Estado”. Mas para analisar a sobrevivência da sobretaxa de IRS “importa perceber como e em que moldes a mesma se encontra prevista na lei e no orçamento do Estado para 2015.”

“A sobretaxa foi criada pela lei do orçamento de Estado para 2013, tendo sido aditado um artigo ao Código do IRS que previa essa sobretaxa. E, ao contrário do que faz supor o seu regime concreto, de que decorrem características que a diferenciam, e bem, do imposto dito principal (o IRS), esta sobretaxa foi sempre enquadrada como receita de IRS – e não como receita autónoma”, sublinha Rogério Fernandes Ferreira, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais entre 2001 e 2002.

O fiscalista assinala que nos anos seguintes a sobretaxa foi prevista nos mesmos moldes. Embora fora do Código do IRS, foi prevista nos diversos orçamentos anuais, “sem nunca se prever, ainda assim, um prazo limitado à vigência da Lei do Orçamento de Estado do ano em causa – 2013, 2014 e 2015.” Isto apesar de o governo sempre ter anunciado a dita como extraordinária. 

Realça ainda que não existe nenhuma norma na Lei do Enquadramento Orçamental que exclua a possibilidade da sua cobrança nesta situação de duodécimos. “A receita obtida através da sobretaxa foi sempre prevista através de um regime e de autorização de cobrança sem prazos de validade ou de existência temporal pré-definida, pelo menos de forma expressa, coibindo-se o legislador inclusive de a apelidar de ‘extraordinária’. Rogério Ferreira defende assim:

“Estes aspetos apontam, consequentemente, para a conclusão de que a receita da sobretaxa, dita ‘extraordinária’, poderá e deverá continuar a ser cobrada em 2016 e em situação de prorrogação do orçamento do ano anterior. Tal como acontece com a receita de IRS, onde o legislador orçamental a quis integrar”.

Ora se IRS continua a ser cobrado em 2016, em caso de “prorrogação do orçamento do ano anterior – evidentemente, por não ter existência temporária (isto é natureza extraordinária, expressamente referida a um prazo de vigência) – o mesmo acontece com a sobretaxa”.

Sobretaxa cai

Entendimento contrário tem o fiscalista Sérgio Vasques, que também foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no último governo socialista. 

“A sobretaxa possui caráter assumidamente extraordinário desde a sua origem em 2011. De início, foi integrada no próprio Código do IRS, embora com vigência apenas anual. Depois, foi expurgada do Código do IRS e passou a estar prevista nas leis orçamentais, como é próprio de todas as medidas transitórias.”

É por isso claro para Sérgio Vasques que, na “história da sobretaxa, a intenção do legislador e a sua colocação sistemática não permitem outra conclusão que não a de que caduca no final de 2015. Falta base legal que autorize a sua cobrança em 2016. Por isso será necessário que até lá a Assembleia vote a sua prorrogação por mais um ano.”

Já o caso dos novos escalões do IRS, que os socialistas pretendem rever, “foram alterados a título definitivo, por revisão do art. 68 e 68-A do CIRS (Código do IRS). Terá que esperar pela próxima reforma do imposto”, para mexer nesta medida que foi para muitos a maior responsável pelo agravamento da carga fiscal sobre os rendimentos. 

Em sentido contrário à validade da sobretaxa em regime de duodécimos pronuncia-se ainda o Jaime Esteves, partner da PwC. “Entendo que tendo sido sucessivamente objeto de atualização anual, a sobretaxa não vigorará em 2016 num cenário de prorrogação do OE por duodécimos”, que remete para o número 58 da lei de enquadramento orçamental, na versão publicada em setembro.

Conselho de Finanças Públicas só conta políticas permanentes

O entendimento de que a sobretaxa do IRS cai em 2016 também está a ser seguido pelo Conselho de Finanças Públicas (CFP). O Observador sabe que o órgão que faz avaliação independente das contas públicas não considera nos seus cenários a sobretaxa como uma medida permanente. Quando faz projeções, a entidade liderada por Teodora Cardoso usa as mesmas regras que os bancos centrais, ou seja, um cenário de políticas invariantes, onde são contempladas as medidas permanentes. A sobretaxa não entra nas contas do CFP, sendo considerada uma medida transitória, tal como o seu próprio nome indica.

Fonte oficial explica que o Conselho de Finanças Públicas apenas pode responder pela elaboração do cenário de políticas invariantes. E remete para o relatório de 9/2015 que atualiza a situação e condicionantes para o período entre 2015/19, o qual “considera apenas as medidas de política económica já legisladas. Não se encontra no âmbito das competências do CFP pronunciar-se sobre questões jurídicas.”

A decisão será sempre do governo que estiver em funções, embora possa ser apoiada em pareceres jurídicos e de especialistas na área de finanças públicas. 

E as outras medidas extraordinárias?

Outra medida extraordinária, que precisará, no entender de Maria Luís Albuquerque, de ser prolongada é a da contribuição de sustentabilidade sobre as pensões mais altas, sabe o Observador. Mas a reduzida dimensão orçamental (40 milhões de euros) levou a ministra a não tomar a lei como uma preocupação.

No entanto, o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira lembra que o Orçamento do Estado parra 2015 prevê que “as percentagens da taxa cobrada (sobre as pensões) devem ser reduzidas em 50% em 2016 e eliminadas em 2017”, pelo que parece claro que esta norma “deverá poder continuar a aplicar-se em fase de uma prorrogação de vigência para 2016 da lei de Orçamento de Estado para 2015”. 

Já as contribuições extraordinárias setoriais, como as aplicadas à energia, estão previstas no Orçamento como tendo um prazo de vigência fixo e determinado. Ou seja, “estão previstas em 2015, mas, apenas, para vigorarem este ano”. Ou seja, caem em regime de duodécimos, conclui ainda Rogério Fernandes Ferreira.