Um turista que tivesse aterrado esta sexta-feira em Lisboa e que passasse pela Avenida da Liberdade iria pensar que o Bairro Alto sobre o qual lera nos guias turísticos era ali. E não seria para menos. Com centenas de pessoas a passearem com uma cerveja numa mão e de mapa na outra, deslocando-se entre espaços com nomes como Garagem EPAL, Tivoli ou Cinema S. Jorge, todos com música ao vivo, a Avenida da Liberdade mais parecia o centro da vida noturna lisboeta.
O Vodafone Mexefest foi o responsável por este movimento entre salas numa zona que, à noite, costuma estar cheia de carros, mas vazia de pessoas. Esta sexta-feira, quem enfrentou o frio levou em compensação a memória dos Chairlift, a melodia pop da guitarra dos Ducktails e, sobretudo, acima de tudo, cada minuto da atuação de Benjamin Clementine no Coliseu dos Recreios.
O mundo gosta de contos de fadas. Gostamos que nos contem a história do artista que tocava nas ruas de Paris, onde chegou a dormir, e que um dia foi descoberto por um agente que decidiu apostar nele. Hoje, o homem que tocava nas ruas esgota salas de espetáculo por toda a Europa e o álbum de estreia ganhou o prestigiado Mercury Prize. O final desta história é feliz, sim. Mas Benjamin Clementine não é apenas dono de uma história que conquista naturalmente o público. É-o porque tem talento, não marketing. Isso ficou à vista hoje, tal como já tinha ficado em Braga, no Porto e em Aveiro, onde atuou esta semana (o sábado dá mais uma prova do que vale, em Faro).
Às 00h25, o britânico prestes a fazer 27 anos de idade, entrou sozinho no Coliseu, descalço, e sentou-se ao piano. O público que enchia a sala começou a pedir “schhh, schhh”, sem que o protagonista tivesse ainda dito uma palavra. À primeira nota tocada ao piano, fez-se então silêncio para ouvir “Gone”, a música que encerra At Least For Now, disco de estreia lançado este ano. Mas ainda era muito cedo para falar de idas e de encerramentos. Havia 1h2o de concerto pela frente. O entusiasmo sentia-se no ar e também na ovação com que Benjamin Clementine foi brindado à primeira canção, depois de mostrar a alma que traz na imensa voz, ora recorrendo ao vibrato ora à spoken word, acelerando e reduzindo como queria.
“Cornerstone”, logo a seguir, confirmou: todo ele é musicalidade até à ponta dos altos cabelos. “Obrigado, boa noite”, disse em português antes de se atirar a “Condolence”, na companhia do baterista, Alexis Bossard. Não foi preciso mais ninguém para fazer deste o espetáculo da noite, e muito provavelmente de todo o festival. Depois de “Nemesis” chegou “London”, com uma simpática alteração de letra para “Lisbon Lisbon Lisbon is calling you“.
E estava. Ao olhar em redor, era possível ver as diferentes tribos em comunhão, desde o cavalheiro que segurava um gin, ao casal de namorados de cabelo igualmente comprido, t-shirts rotas, a partilhar tabaco de enrolar. Todos com os olhos no palco e muitas letras sabidas, como se Benjamin Clementine fosse um daqueles dinossauros da música. Foi o que pareceu durante os aplausos do encore, os cânticos espontâneos já a música tinha acabado. Os dois músicos despediram-se às 01h40 com “I Won’t Complain”. De facto, a única queixa que há a fazer é ao som do Coliseu, que não esteve à altura do talento de Benjamin Clementine e da resposta do público. Continuaremos a ouvir falar muito dele.
Rock, soul, folk e indie. Houve um festival para cada um
Por motivos súbitos de saúde, Roots Manuva teve de cancelar a atuação na Estação Vodafone FM, tendo sido substituído pelo português Mike El Nite. Foi este o único percalço do primeiro dia do Vodafone Mexefest 2015. Até o tempo ajudou, um pouco frio, mas sem vento ou chuva. Os horários na sua maioria também foram escrupulosamente cumpridos, exceção feita aos Chairlift, que entraram em palco com 20 minutos de atraso.
Mas já lá vamos. Ainda os Janeiro tocavam na casa do Alentejo e já a Igreja de S. Luís dos Franceses estava a rebentar pelas costuras. À porta, uma pequena multidão tentava garantir a entrada no concerto da londrina Anna B Savage. Muitos não chegaram a passar da escadaria. Sozinha, em cima do palco, Anna quase parecia pequena de mais. Agarrada à guitarra, atacou a multidão com “IV”, um dos temas do seu EP de estreia, EP, sem dó nem piedade. Seguiu-se “Also Human” e “Something Of An End”, do Live at Café Oto, enquanto baloiçava sob um foco de luz azul, como que embalando (ou embalada?) pela guitarra.
Vieram mais temas de EP, “III” e “I”, que serviram de (uma amarga) despedida. Ao fim de pouco mais de meia hora de concerto, Anna, um mistério que ainda ninguém soube explicar, atirou com a guitarra ao chão e saiu apressada, desaparecendo no interior da igreja. “Já acabou?” A pergunta ficou no ar. Afinal de contas, soube a pouco.
Ao mesmo tempo que To Trips tocava na Sociedade de Geografia, Cave Story davam um banho de rock na Garagem EPAL. Até há não muito tempo, o trio das Caldas da Rainha era uma banda de garagem e agora leva a bateria, baixo e guitarra a todo o país, fruto da boa receção do primeiro EP, Spider Tracks. Houve muita gente a marcar a Garagem no trajeto da noite. Só é pena que o palco tenha uma disposição estranha, com metade dos presentes a terem de ver a banda de lado e um terço de frente tapado com colunas.
Quando às 21h00 em ponto Akua Maru subiu ao palco da estação ferroviária do Rossio, já tinha uma multidão à sua espera. “O meu nome é Akua Maru e estou aqui para honrar o soul.” E honrou. Com uma energia (no mínimo) contagiante, a norte-americana conseguiu pôr toda a gente a bater o pé na estação ferroviária do Rossio. Durante o concerto de pouco mais de uma hora, houve tempo para tudo: para hip-hop, com muito soul lá dentro, jazz e até para um bocadinho de português. “Quando estive no Brasil aprendi a dizer ‘tudo bem?’”.
Com quem não parece estar tudo bem é com Conor O’Brien, pedra basilar do grupo The Villagers. Os irlandeses lançaram este ano o terceiro disco, Darling Arithmetic, e O’Brien pôs tanta intimidade nas canções quanto é possível. A estreia em Portugal aconteceu num Cinema S. Jorge composto mas não esgotado, acompanhado por um baterista e uma teclista, ao som de “Set The Tigers Free”. Dedilhando na sua guitarra acústica e fazendo harmonias vocais, O’Brien pareceu frágil e sincero em palco, sobretudo quando anunciou, meio a brincar, meio a sério, que vinha aí “mais uma canção incrivelmente depressiva”. Ali estava O’Brien a dizer-nos que demorou algum tempo e que cometeu alguns erros até ter coragem para se assumir como homossexual em “Courage”. Que nada vem sem custos, mas como é libertador saber isso.
No final de “Courage”, foram muitos aqueles que rumaram para outras paragens. O destino preferencial era o Coliseu dos Recreios, onde iriam atuar um dos grandes destaques desta sexta-feira, os Chairlift. Mas a eletrónica de Aaron Pfenning e Caroline Polachek não parece ter sido suficiente para animar o público. O duo chegou ao palco já fora de horas e começou logo a disparar temas do novo álbum, Moth, num registo mais etéreo do que aquele a que estamos acostumados.
Seria preciso mais meia hora e o mítico tema “Bruises” para se sentir algum ânimo por parte da plateia que, a pouco e pouco, foi abandonando o recinto inicialmente cheio do Coliseu dos Recreios. Ainda assim, Aaron e Caroline não desiludiram. Não faltaram grandes momentos, músicas elegantes e sofisticadas, e os passos de dança quase mágicos de Caroline Polachek. No final, com o Coliseu já a meio-gás, ficou a promessa de um regresso a Portugal e uma salva de palmas com um entusiasmo que pouco ou nada se sentiu durante o concerto.
Se a rebeldia (e, reconheça-se, a entrega) dos Demob Happy no Ateneu Comercial mal deixava distinguir os riffs da guitarra solo, numa sobreposição de sons por vezes confusa, então o concerto dos Ducktails, às 23h00, foi um descanso. Saudamos o regresso do Tivoli ao circuito de salas do Mexefest, saudamos a nitidez do som dos instrumentos e a linha de guitarra que dá o ambiente dream pop ao projeto de Matt Mondanile, guitarrista dos Real Estate, mas a voz não é de todo o seu forte. Cumpre, mas é quando os Ducktails se tornam só instrumentais que lhes vislumbramos a força. E é também nessa altura que nos lembramos que está na hora de os Real Estate marcarem um concerto em Portugal. Até lá, ficámos sobretudo com as canções do novo álbum, St Catherine, e com a memória da felicidade de Mondanile por estar a tocar numa sala tão grande — “a maior em que tocámos em toda a digressão”, contou.
O cancelamento da atuação de Root Manuva, programada para as 23h00 no palco da estação ferroviária do Rossio, por motivos de saúde, obrigou a organização a preencher o espaço com um outro músico. O escolhido foi Mike El Nite, um rapper português que ficou conhecido em 2013 pela música “Mambo N.º 1”. O concerto contou com a presença de vários convidados, nomeadamente Vilão, da Astro Records. A audiência, contudo, nunca chegou a atingir um grande número.
Apesar da fila que chegava às portas do Ateneu Comercial de Lisboa, não faltou público aos Titus Andronicus, a banda punk de New Jersey que foi buscar inspiração à mais sangrenta peça de William Shakespeare. Patrick Stickles, vocalista, começou por surgir sozinho. De guitarra ao ombro, deixou cair um primeiro acorde. Depois outro e outro. Seguiram-lhe Eric Harm, Julian Veronesi , Adam Reich e Jonah Maurer, que completaram o quinteto. Depois de um grito, a música despertou.
O que depois se seguiu foi uma hora de punk “à séria”, duro e sem compromissos. E sem direito a pausas para respirar. Se havia cansaço na audiência, não se notou. Não faltaram saltos ou headbangings brutos, como se do primeiro concerto da noite se tratasse. Já o alinhamento, seguiu principalmente o último álbum de originais da banda, The Most Lamentable Tragedy, lançado em julho deste ano.
O Vodafone Mexefest prossegue este sábado, com Patrick Watson a encabeçar o cartaz. Entre os principais destaques para o dia dois do festival, contam-se ainda nomes como Peaches, Ariel Pink ou Petite Noir.