Viviane morreu com 19 meses. Samira, com três anos, continua desaparecida. A mãe que terá levado as duas filhas para o rio Tejo na zona de Caxias, em Oeiras, encontra-se detida pela Polícia Judiciária. O que poderá acontecer-lhe daqui em diante? Qual a pena aplicada em caso de homicídios? Haverá atenuantes?
Validação da prisão preventiva
O primeiro passo processual passou por um juiz de instrução criminal validar a detenção da mãe das vítimas — o que aconteceu ao início da noite de quarta-feira. Foi a oportunidade para a sua defesa ouvir as imputações que são feitas pelo Ministério Público (MP), nomeadamente os indícios da alegada prática de dois crimes de homicídio, tendo o Tribunal de Instrução Criminal de Cascais validado a prisão preventiva da mãe das duas crianças sob suspeita de homicídio qualificado.
A arguida ficará presa, pelo menos, nos próximos três meses – altura em que a medida de coação será reavaliada, podendo o juiz de instrução criminal que analisar o caso revogar a mesma.
Apesar de o corpo de Samira ainda não ter sido encontrado, o juiz de instrução criminal que ordenou a condução da mãe para um estabelecimento prisional entendeu que, face ao tempo que já passou (dois dias) e às condições atmosféricas e à idade da criança (três anos), é pouco provável a sua sobrevivência nas águas do rio Tejo. Já o corpo de Viviane já foi autopsiado e libertado para que a família possa realizar o funeral.
A defesa da mãe irá tentar juntar a este inquérito aberto na sequência da morte de Viviane e do desaparecimento de Samira, na noite de segunda-feira, um outro inquérito que terá sido aberto em novembro de 2015 relacionado com a alegada agressão sexual do pai, Nelson Ramos, a Samira. A alegação de que os supostos abusos sexuais do pai, que são por ele rejeitados, terão motivado um ato desesperado da mãe serão uma importante estratégia da defesa.
A conclusão da investigação deverá ser relativamente rápida — diversas fontes judiciais falam num inquérito que deverá demorar entre três a seis meses a terminar. A prioridade passa pela recolha do corpo da criança desaparecida e pela audição do taxista que terá transportado a mãe e as duas crianças para a zona de Caxias e que, depois de ter testemunhado a entrada das três na praia, terá dado o alerta às autoridades e aos bombeiros.
Se o Ministério Público concluir pela prática dos crimes por parte da mãe, será deduzido o despacho de acusação que encerra formalmente a fase de inquérito.
A defesa terá direito a contestar a acusação através da abertura da instrução criminal. Será uma espécie de pré-julgamento, em que um juiz de instrução criminal ouvirá os argumentos da defesa e do Ministério Público, tomando no final uma de duas decisões possíveis: o arquivamento do caso ou a pronúncia para julgamento.
Em casos semelhantes, e quando a arguida confessa a prática dos crimes ou a defesa entende que os indícios são demasiados fortes, o processo passa diretamente para a fase de julgamento, já que a instrução é facultativa.
José Góis, procurador coordenador do Tribunal da Comarca de Lisboa, explica ao Observador que é normal que os crimes de homicídio sejam mais rápidos que os casos mediáticos de criminalidade económico-financeira. Além de ser mais elevada a probabilidade de o arguido estar preso, o que faz com que o processo seja logo prioritário (correndo mesmo em férias judicias), há outras razões: “É normal que os casos de criminalidade económico-financeira demorem mais tempo a ser investigados e julgados pela dificuldade e complexidade inerente a esse tipo de criminalidade. São crimes que se estendem no tempo, são praticados num intervalo de tempo muito significativo e só são detetados anos depois de terem sido praticados. As perícias e a documentação são extensas, assim como o número de testemunhas arroladas para cada julgamento costuma ser muito significativo”.
Julgamento: quais as atenuantes?
A grande questão de um eventual julgamento passa pela maior ou menor compreensão que o tribunal tiver perante as atenuantes que a defesa venha a apresentar, nomeadamente o contexto de alegada violência sexual do pai sobre uma das crianças e a alegada violência doméstica sobre a mãe. Será que a alegada depressão profunda em que a mãe se encontrava será tida em conta?
Falando em abstrato, e sem nunca se pronunciar sobre o caso concreto, o procurador José Góis explica que a lei impõe que, genericamente, “o juiz tem de ter em conta o circunstancialismo de cada caso”. “A lei obriga a que, por exemplo, nos casos de homicídio se tenha em conta o comportamento do arguido antes e depois da prática do crime. Por isso mesmo, existem diferenças entre um crime de homicídio qualificado e um simples. Uma coisa é a premeditação, outra coisa é um homicídio no calor de uma discussão”.
Outro exemplo, explica o procurador coordenador do Tribunal da Comarca de Lisboa, “é um caso de uma mulher vítima de violência doméstica que mata o marido na sequência de mais uma agressão”, sendo que essas atenuantes têm de ser alvo de prova em audiência de julgamento.
O advogado Miguel Marques Oliveira, contudo, discorda. “Neste caso, a mãe terá matado as crianças ou terá colocado as mesmas em perigo, levando-as para a água quando sabia que a vida das crianças poderia estar em causa com essa ação. Não vejo como é que o caso de alegada agressão sexual poderá ser uma atenuante, já que não tem nenhuma relação direta com o que aconteceu.”
José Gois alerta, por outro lado, para a dificuldade de prova de situações de agressão sexual ou até mesmo de violência doméstica. “São crimes praticados na intimidade familiar, sem testemunhas, e em que, muitas vezes, está em causa a palavra de uma pessoa contra a outra. Não há testemunhas e há pouca prova pericial”.
O suicídio piedoso
Será que o conceito de “suicídio piedoso”, que diversos psiquiatras explicaram poder estar em causa neste caso, será aceite em tribunal? A ideia de que a mãe terá levado as crianças para o rio Tejo, tentando o suicídio de seguida, para protegê-las de um mal maior (as alegadas agressões sexuais do pai) é uma tese defendida por diversos psiquiatras.
Miguel Marques Oliveira aceita que “um quadro de uma depressão profunda” pode ser uma atenuante, admitindo também que essa teoria psiquiátrica tem valor penal. Mesmo assim, argumenta, o tribunal poderá dizer que, se a mãe não era capaz de proteger as crianças, existiam instituições onde as mesmas poderiam estar a salvo do alegado agressor.
O advogado Humberto Correia Santos discorda: “Seguramente que o quadro clínico de alteração psiquiátrica grave, como uma depressão profunda, é uma atenuante. Neste último caso, teria de ser produzido um relatório pericial ou poderia ser necessário o testemunho de um psiquiatra que atestasse que a depressão profunda alterou o estado psíquico normal da arguida. O tribunal terá de ter isso em conta”.
O procurador José Góis tem a mesma opinião. Falando em termos abstratos (tal como os advogados), afirma que “essa pode ser uma atenuante em termos de pena”. Mais: “O juiz não pode ser insensível a esse circunstancialismo de violência que rodeie determinada família”.
Certo é que os tribunais portugueses têm vindo a aumentar as penas de prisão nos casos de homicídio. Com uma pena máxima de 25 anos de prisão, os juízes têm a tendência, como explica um magistrado ouvido pelo Observador, a considerar que a moldura penal não é suficientemente elevada: “De um modo geral, uma pena de prisão por homicídio qualificado tem uma pena entre os 14 e os 16 anos, conforme os casos concretos e o tribunal. Já na generalidade dos restantes crimes, parte-se da pena mínima e sobe-se ligeiramente”, afirma a mesma fonte.
Os crimes de violência doméstica e de agressão sexual
Igualmente evidente nos últimos anos tem sido a subida muito significativa das queixas por abuso sexual de menores e por violência doméstica.
“Depois do caso Casa Pia, verificou-se uma maior sensibilidade para os casos de pedofilia da parte dos tribunais, enquanto a violência doméstica tem tido muito mais atenção da comunicação social nos últimos anos. Houve um grande aumento de inquéritos e de condenações pelo crime de violência doméstica. Com a atenção que a comunicação social passou a dar a estes casos, os procuradores e os juízes foram sensibilizados a dar mais atenção a este tipo de criminalidade”, afirma o procurador José Góis. “Quer a pedofilia, quer até a própria violência doméstica, passaram a ser olhados como crimes repugnantes aos olhos da opinião pública. Os tribunais não podem ser insensíveis à mudança de atitude cultural perante esse tipo de criminalidade”, conclui o procurador.
Os números também demonstram isso. Segundo o último relatório da Direção-Geral de Serviços Prisionais, as penas e medidas aplicadas em 2015 ao crime de violência doméstica atingira um total de 558 em 2015 — uma subida gigantesca quando comparada com as 30 penas aplicadas em 2010.
O mesmo se verifica em termos de aplicação da pulseira eletrónica (subida de 51 casos em 2011 para 474 em 2015) e, principalmente, em termos de inquéritos registados devido ao mesmo crime: 5.303. Trata-se de um aumento de 10,25% em relação a 2014, o que faz com que o crime de violência doméstica ocupe o terceiro lugar do ranking em termos de número total de inquéritos.