O governo já recebeu o relatório da auditoria independente que avaliou a existência de sobrecompensações recebidas pelas centrais da EDP entre 2010 e 2014. As conclusões confirmam que se verificou um aumento dos preços, e de custos, no mercado dos serviços de sistema. E que essa subida de preços se traduziu em ganhos de margem para as centrais da maior elétrica portuguesa que operam em regime de mercado, sobretudo entre setembro de 2012 e setembro de 2013. Mas o relatório é muito prudente quanto às causas que estarão por detrás dos desvios detetados, ou seja, não conclui que as ofertas das centrais da EDP tenham sido geridas intencionalmente para produzir esse resultado.
A auditoria a cargo do Brattle Group reconhece que “os desvios observados entre as ofertas das unidades e as nossas referências durante 2012 e 2013 aumentaram as margens de fornecimento de reserva secundária das unidades da EDP que não fazem parte do âmbito dos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual)”. Mas, nas contas ao valor das sobrecompensações, o relatório quantifica vários cenários e variáveis que dificilmente permitem retirar conclusões definitivas, e as respetivas consequências, em relação ao impacto financeiro do comportamento das centrais elétricas da EDP.
Ainda assim, o governo considera que as conclusões apresentadas “são de relevante interesse para o Sistema Elétrico Nacional” e, em despacho do secretário de Estado da Energia, a que o Observador teve acesso, dá orientações aos reguladores (o da energia e o da concorrência) para que tomem medidas “corretivas” em relação ao passado e de “correção do desenho de forma a evitar a ocorrência destas situações no futuro”.
Situações que “têm de ser corrigidas”
Em declarações ao Observador, o secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, destaca que o relatório detetou situações que “têm de ser corrigidas” ao nível do desenho do mercado de energia e assegurou que o governo vai aproveitar as conclusões “para atuar, do ponto de vista legislativo e contratual, para evitar que estes problemas voltem a acontecer”.
O que são os CMEC?
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A sigla CMEC quer dizer “custos de manutenção do equilíbrio contratual”, um mecanismo criado em 2004 por causa do mercado ibérico de eletricidade. Para o Mibel funcionar, era preciso que fossem feitas ofertas de energia em mercado, mas as centrais vendiam a sua produção ao abrigo de contratos de longa duração que as protegiam do risco de mercado. A EDP aceitou trocar estes contratos CAE (contrato de aquisição de energia) por contratos CMEC, libertando a oferta no mercado. Mas garantiu que, em caso das condições e do preço serem mais desfavoráveis, receberia compensações durante alguns anos pagas pelas tarifas elétricas.
No caso das medidas corretivas relativas ao passado, os reguladores só podem atuar por via das suas funções sancionatórias. Neste caso, apenas a Autoridade da Concorrência (AdC) pode atuar, abrindo um processo de investigação por práticas contrárias à lei da concorrência. Em causa poderá estar um eventual abuso de posição dominante por parte da EDP que controla cerca de 90% do mercado de serviços de sistema.
Questionada pelo Observador, fonte oficial da AdC afirmou aguardar com expectativa a conclusão e os resultados da auditoria que recomendou, e que não deixará de ter em consideração na ponderação de eventuais intervenções futuras. Para que a auditoria fique concluída, falta ainda o parecer final da comissão de acompanhamento.
Travão aos preços dos serviços de sistema
A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) não tinha, à data, competências para sancionar, mas já este ano produziu uma diretiva que introduz um conjunto de medidas para limitar para o futuro os ganhos da EDP neste mercado e que deverão permitir poupar 120 milhões de euros aos consumidores até 2020. Esta iniciativa corresponde já às medidas de correção do desenho do sistema pedidas pelo Ministério da Economia.
O primeiro travão às sobrecompensações da EDP foi aplicado em 2014, através de um despacho do anterior governo que impôs um teto ao preço cobrado por estes serviços, usando como referência os valores cobrados em Espanha e nas centrais a gás. Segundo a ERSE, estas medidas terão permitido uma poupança de 50 milhões de euros até ao final de 2015. Afastada parece estar a possibilidade, admitida pelo anterior executivo, de exigir à EDP a devolução de ganhos excessivos, em benefício do sistema e do défice tarifário.
Fonte oficial da elétrica adiantou ao Observador que a empresa desconhece o relatório. No entanto, assegura que “a sua atuação a este respeito foi sempre no sentido de cumprir as regras”.
O aumento dos custos no mercado de serviços de sistema e as suspeitas de distorção das ofertas em benefício da elétrica foram identificadas pela ERSE e pela pela AdC, em 2013. Na recomendação ao governo em que propunha a realização de uma auditoria independente, a Autoridade da Concorrência assinalou:
“Importa notar que o risco de sobrecompensações no auxílio concedido é um fator de distorção de concorrência dado que confere à beneficiária do auxílio a possibilidade de ampliar a vantagem económica sobre os seus concorrentes”.
Em causa, nesta análise, estão dois mecanismos complexos que fazem parte do sistema nacional de produção de energia e que condicionam a forma como funciona o mercado grossista de eletricidade com impacto nos preços que chegam aos clientes finais: os CMEC e o mercado de reserva secundária de energia que é gerido pelos serviços de sistema.
Os CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual) são contratos que asseguram o nível de remuneração de uma central elétrica durante um período de tempo, independentemente da quantidade de energia produzida e vendida por essa unidade e o preço cobrado. Durante o período analisado, uma boa parte das centrais da EDP funcionava com a proteção de contratos CMEC, em particular as grandes barragens.
Determinar os “ganhos excessivos” é difícil
Ora, as centrais hídricas são também as principais fornecedoras de reserva secundária. Este é um serviço contratado pelo operador da rede, a REN, para assegurar que há um equilíbrio perfeito entre a procura e a oferta de eletricidade a cada momento. A REN faz um leilão diário para adquirir capacidade de produção que possa fornecer reserva de regulação secundária. As centrais que participam não fazem ofertas de energia, mas de capacidade que pode vir a ser acionada ou desligada em tempo real de forma a responder às necessidades do sistema elétrico.
O que são serviços de sistema?
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Os serviços de sistema, ou mercado de reserva secundária, asseguram que a energia disponibilizada pela rede corresponde exatamente à procura, a cada instante. Um desencontro pode provocar um apagão. As centrais que oferecem reserva secundária estão disponíveis para fornecer ou retirar energia do sistema, em função das necessidades definidas pelo operador da rede, a REN (Redes Energéticas Nacionais). Essa disponibilidade é colocada em mercado por um preço e contratada pela REN, que passa os custos para os preços da eletricidade. A maioria das centrais que operam neste mercado é explorada pela EDP.
Mas quando chega a hora de fazer as contas à sobrecompensação que a elétrica terá recebido por via do aumento dos preços destes serviços, a auditoria apresenta vários cenários e com intervalos distantes, em função da ponderação ou não de um prémio de risco, que dificultam o apuramento dos ganhos que podem ser considerados anormais. Nos quatro anos analisados, as centrais da EDP que estão em regime de mercado terão beneficiado de sobrecompensações entre cerca de 47 milhões e quase 120 milhões de euros. O valor mais alto exclui qualquer prémio de risco das centrais, o mais baixo incorpora um prémio de 10 euros por MW (megawatt).
O relatório apresentado pelo Brattle Group diz, ainda, que o grosso destas compensações aconteceu em 2012 e 2013, cerca de 30 milhões de euros por ano, e foi capturada pelas centrais elétricas que funcionam em regime de mercado e cujos ganhos resultaram de um aumento de oferta no mercado de reserva. Este comportamento só foi possível porque as centrais que funcionam num regime de remuneração protegida (as que têm CMEC) não colocaram ofertas em cima da mesa, não obstante terem capacidade para o fazer.
Foi aliás este comportamento duplo, verificado numa mesma central com grupos a funcionar nos dois regimes (mercado e CMEC) — circunstância que resultou dos reforços de potência feitos em barragens do rio Douro — que fez soar os sinais de alerta.
Os dois tipos de central são geridos pela EDP que tinha um incentivo para retirar as centrais CMEC do mercado. Estas centrais, quase todas grandes barragens, beneficiam de um contrato que garante a sua remuneração, mesmo quando não vendem energia. Ganham sempre, mesmo paradas. Já as centrais que funcionam em regime de mercado só ganham em função da energia ou reserva que colocarem no mercado. É esta diferença que permite à EDP fazer arbitragem entre as ofertas e reforçar os ganhos das unidades que estão no mercado. Os eventuais ganhos obtidos pelas unidades em regime CMEC acabam por ser devolvidos no acerto de contas.
Conheça algumas conclusões do relatório:
- As unidades detidas pela EDP que são abrangidas pelos CMEC foram incentivadas a não participar no mercado de reserva secundária devido ao ajuste anual dos CMEC e ao impacto positivo que a sua participação limitada teve sobre as receitas de reserva secundária auferidas pelas fábricas (centrais) da EDP que não fazem parte do âmbito dos CMEC.
- As unidades associadas aos CMEC parecem ter oferecido consistentemente menos capacidade do que tinham disponível para fornecer regulação secundária e as suas ofertas ultrapassaram os verdadeiros custos da prestação desse serviço.(…)
- Apesar destas conclusões, pelo menos parte do aumento dos preços de reserva secundária observado entre 2010 e julho de 2012 parece justificar-se. A capacidade disponível para fornecer reserva diminuiu devido ao declínio da energia produzida por centrais a gás e às restrições de produção hidroelétrica devido à baixa precipitação no outono e inverno de 2011. (…)
- Consideramos que foi entre setembro de 2012 e setembro de 2013 que o comportamento de oferta das unidades associadas aos CMEC teve o maior impacto no mercado de reserva secundária. Embora o preço da reserva secundária tenha diminuído a partir desse momento, é durante este período que as ofertas das unidades e o preço de mercado real se desviam mais das nossas referências.
- No entanto, e na ausência de informações detalhadas sobre os custos das unidades individuais, não é possível determinar se todos os aumentos de preço foram justificados por este motivo. Um pressuposto essencial neste contexto é saber se teria sido razoável para as unidades incluir um prémio de risco nas respetivas ofertas de reserva secundária. (…)
- Se considerarmos também o impacto de uma oferta que reflete os custos sobre o preço de reserva secundária, o aumento global das margens é de cerca de 15 milhões por ano com um prémio de riso de 10 euros/MW (megawatt) e 30 milhões de euros por ano sem prémio de risco.
Regulador exige informação mais detalhada
A entrega de informação mais detalhada por parte dos produtores que funcionam em regime CMEC para permitir uma monitorização mais eficaz destas centrais no mercado de serviços do sistema, é uma das novas exigências do regulador.
A auditoria foi pedida pelo anterior executivo depois de a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) e a Autoridade da Concorrência terem detetado um aumento significativo dos custos no mercado de serviços de sistema, cobrados à REN (Redes Energéticas Nacionais), mas que passaram para o sistema e as tarifas elétricas, sobretudo a partir de 2011. Perante as suspeitas de distorção do mercado com ganhos para a EDP, a elétrica que gere as centrais que fornecem serviços de sistema, foi pedida uma auditoria externa independente para confirmar a existência de sobrecompensações, calcular o seu valor e, determinar, se fosse caso disso, a devolução desses ganhos excessivos ao sistema elétrico e às tarifas da eletricidade.
Para realizar esta auditoria foi contratado, pela REN, o Brattle Group, um grupo inglês de consultoria nas áreas de energia, financeira, regulação e concorrência. O relatório foi remetido no início deste ano, e está a ser ainda apreciado pela pela comissão de acompanhamento nomeada para o efeito e que inclui representantes da ERSE, AdC, Direção-Geral de Energia e REN.