Não é por acaso que alguns dos melhores filmes italianos recentes são policiais realistas com uma linha direta para a atualidade política e económica. E não é por coincidência que esses filmes são baseados em livros escritos por autores, jornalistas e até magistrados com profundo conhecimento da realidade italiana. Assim, “Romanzo Criminale”, de Michele Placido, centrado no submundo de Roma dos anos 70 até final do século XX, adapta a ficção homónima de Giancarlo De Cataldo, que além de romancista e dramaturgo, é juiz em Roma. “Gomorra”, de Matteo Garrone, transpõe para o cinema a obra com o mesmo título do escritor e jornalista Roberto Saviano sobre a Camorra, a máfia siciliana. E agora, “Suburra”, de Stefano Sollima, baseia-se no “thriller” do mesmo nome, assinado a meias pelo já citado De Cataldo e por Carlo Bonini, escritor e prestigiado jornalista de investigação, que já passou pelo “Corriere della Sera” e pelo “La Repubblica” (Sollima também realizou as séries de televisão baseadas em “Romanzo Criminale” e “Gomorra”).

[Veja o “trailer” de “Suburra”]

Suburra era o nome de uma zona mal-afamada da Roma antiga, antro de tabernas, casas de jogo e bordéis, onde os membros das grandes famílias, ou os seus representantes, se iam envolver em segredo em negócios escuros. O título do filme, e do livro que o originou, sugere que pouco mudou em dois milénios de vida da capital italiana, e que políticos de todos os azimutes, empresários e malfeitores continuam envolvidos em corrupção, depravações, negociatas e traficâncias. E ao contrário do que acontecia nos filmes policiais italianos politicamente mais militantes e “engajados” (sempre à esquerda) das décadas de 60 e 70, estes novos “thrillers” estão praticamente vazios de personagens positivas ou idealistas, não têm quaisquer ilusões ideológicas nem adiantam soluções para as situações que documentam. O seu ponto de vista é descritivo, desencantado e pessimista de cima a baixo, e da esquerda à direita.

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[Veja a entrevista com o realizador Stefano Sollima]

O enredo de “Suburra” passa-se no final de 2011, num clima de instabilidade política, social e meteorológica, “Sete dias antes do Apocalipse”, como se lê na legenda inicial, e a contagem decrescente vai-se fazendo à medida que a história decorre. O governo está prestes a cair, o presidente da Câmara de Roma demitiu-se, o Papa pondera resignar (esta é a única liberdade de compressão temporal que o filme toma, já que Bento XVI só deixou o trono de São Pedro em 2013), a invernia abate-se sobre a cidade. Há um negócio multimilionário no horizonte, a transformação da degradada zona portuária de Ostia numa Las Vegas romana, e que envolve deputados poderosos e corruptos, líderes de famílias mafiosas, empresários da noite e um alto membro da cúria romana, que discute percentagens tu cá, tu lá com o discreto “capo” de uma daquelas.

[Veja os bastidores das filmagens]

Toda esta gente é motivada pelo dinheiro e pelo poder e não admite que lhe seja posto o menor obstáculo á frente. No entanto, a morte por “overdose”, na casa do deputado encarregue de fazer passar no parlamento a lei que transformará Ostia num paraíso do jogo, de uma prostituta menor ligada a um homem de mão de uma das famílias do crime, vai destabilizar a paz existente e o equilíbrio estabelecido de interesses, ligações e lealdades entre os diversos atores. Sejam eles parlamentares aparentemente respeitáveis, pistoleiros chungas, usurários ciganos que cobram juros com sangue, cardeais gananciosos ou “padrinhos” de falinhas mansas. Por isso, haverá assassínios, ameaças, chantagem, raptos, tiroteios em locais públicos, violência sortida e “suspense”, enquanto a chuva parece não parar de cair e o apocalipse se aproxima a passos largos.

[Veja uma cena do filme]

Escorado num argumento de betão armado e verosímil até ao arrepio, contando com um bom e homogéneo grupo de atores e atrizes, vários deles conhecidos de filmes e séries recentes, como Elio Germano (“O Meu Irmão é Filho Único”), Pierfrancesco Favino (“Rush-Duelo de Rivais”), Claudio Amendola, Greta Scarano ou o francês Jean-Hughes Anglade (“Suburra” é uma co-produção italo-francesa, como as que eram comuns nas décadas de 60, 70 e 80 e deram muitos e bons filmes ao cinema europeu), Stefano Sollima nunca deixa que o complexo enredo, que viaja do Vaticano e do parlamento aos bairros populares, passando por residências de luxo, pardieiros e moradias apimbalhadas, meta os pés pelas mãos e deixe de ser legível para o espetador. E filma com o pragmatismo, a segurança e a certeza visual de um atirador de elite que manejasse uma câmara em vez de uma espingarda, aproveitando ao máximo a Roma noturna e invernosa onde tudo se passa e não se perdendo em moralismos, piedades ou jeremíadas.

[Veja uma cena do filme]

https://youtu.be/JlYF_RSUDaM

O índice de realismo de “Suburra”, que em 2017 será uma série na Netflix, anda mesmo muito lá pelo alto, e o filme deixa-nos de novo a lamentar a incapacidade crónica do cinema português em produzir algo que se lhe assemelhe minimamente. A Itália será um país com problemas políticos, económicos, sociais e de corrupção e criminalidade muito parecidos com os nossos. Mas ao menos consegue transformá-los em grandes filmes e séries de televisão que exporta para toda a parte, ganham prémios e deixam até os americanos a roer-se de inveja.