A Bioquark, uma empresa de biotecnologia norte-americana, conseguiu a autorização ética do regulador de saúde para avançar com uma investigação que envolverá 20 pessoas clinicamente mortas devido a lesões cerebrais. A ideia é verificar se é possível “ressuscitá-las” e perceber que partes do sistema nervoso central se consegue recuperar. Os 20 participantes têm que ter os órgãos a funcionar com o apoio de máquinas de suporte de vida.
Nesta investigação, que será realizada num hospital na Índia, serão combinadas várias terapêuticas como uma injeção no cérebro de células estaminais e um cocktail de peptídeos, com lasers e técnicas de estimulação de nervos já utilizadas em doentes em coma, com sucesso.
Os participantes do ReAnima Project vão ser monitorizados durante meses através de equipamentos de imagiologia para detetar sinais de regeneração no cérebro. E os cientistas estão convencidos que as células estaminais do cérebro conseguem apagar o seu histórico e “ressuscitar” graças ao tecido que as rodeia.
“Isto representa o primeiro ensaio do género e mais um passo em direção à eventual reversão da morte”, afirmou Ira Pastor, CEO da Bioquark, em declarações ao jornal The Telegraph.
Ao Observador, António Jácomo, do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto, afirmou que esta é uma “matéria recorrente” e que há “um grande desejo de ressuscitar e reanimar corpos”.
O investigador considera que, “do ponto de vista biológico, é perfeitamente possível e acreditamos que o futuro da humanidade caminha para a longevidade com uma capacidade de recuperação cada vez mais elevada”. E entende que estas experiências até agora só não avançaram em humanos por “razões de integridade científica e critérios de investigação”.
“É muito difícil por questões de consentimento e questões éticas na área da investigação científica que alguns ensaios post mortem sejam aprovados. E acredito que, de forma mais pública, não estejam a ser divulgados mais estudos por causa dessas questões.”
Será possível recuperar o cérebro a 100%?
António Jácomo acredita, contudo, que não será possível recuperar integralmente o cérebro, julgando aquilo que acontece no caso dos doentes com algumas lesões neuronais suscitadas por um coma profundo prolongado ou alguma lesão neuronal com perda de consciência.
Há casos de alguma recuperação não só cognitiva mas também motora. De acordo com a evidência que temos, suspeitamos que o facto de alguém já estar clinicamente morto e ser depois reanimado implicará algumas perdas irreversíveis do tecido neuronal. A recuperação nunca será a 100%”, afirma o investigador.
E se isto acontece em casos de lesões muito específicas, “imaginamos que quando for o cérebro todo as lesões serão muito mais expressivas. Podemos até conseguir ativar algumas áreas, nomeadamente as motoras que são as mais fáceis, mas notamos que há algumas lesões que afetaram a parte cognitiva, emocional e da memória que são mais difíceis de recuperar”.
Ressuscitar versus reanimar
E é precisamente pela falta de garantias ao nível das funções cognitivas e da memória que se erguem as questões mais filosóficas. Para quê “ressuscitar” alguém em morte cerebral? Qual o objetivo? E a quem se destinaria?
Levanta-se ainda a questão da diferença entre ressuscitar e reanimar”, alerta António Jácomo.
“É possível nós conseguirmos ter esta ativação corporal do cérebro, o problema é que todas as memórias, toda a área do hipocampo, os conceitos guardados no cérebro são guardados ativamente. Nós não sabemos se quando acaba a atividade neuronal todos esses referentes serão mantidos ou apagados. Que homem do futuro vamos ter?”, interroga o especialista em bioética.