O Ministério Público abriu inquéritos à cedência de autocarros por parte de três câmaras para os funcionários participarem numa manifestação da CGTP, depois de ter recebido denúncias acusando as autarquias de peculato. No dia 10 de novembro de 2015, o segundo Governo de Pedro Passos Coelho caía no Parlamento, ao fim de menos de um mês, derrubado pelos votos dos partidos que formariam a aliança parlamentar de esquerda.
Às portas da Assembleia da República, milhares de pessoas manifestavam-se contra o Executivo PSD/CDS, num protesto organizado pela CGTP. Entre os manifestantes, contavam-se vários funcionários das autarquias de Évora, Montemor-o-Novo e Vila Viçosa — as três comunistas –, que chegaram a Lisboa em autocarros cedidos pelas câmaras municipais. O episódio provocou polémica e levou o PSD a falar em falta de “ética” e de “vergonha”.
As denúncias ao Ministério Público foram feitas por um grupo de cidadãos, liderado pela sociedade de advogados Barros Sales & Associados — os documentos, apresentados a 3 de maio de 2016, são assinados por José Manuel de Barros Sales e por Manuel Luzes Sales (do escritório faz parte ainda Nuno Aureliano, que no site da sociedade de advogados refere ter sido assessor de José Pedro Aguiar-Branco na Justiça entre 2004 e 2005). Ao Observador, fonte ligada a este grupo de cidadãos, classifica o comportamento das autarquias envolvidas como “repugnante“.
Os processos estão agora em fase de inquérito. O Ministério Público terá de analisar as denúncias, verificar os factos e pode, ou não, constituir arguidos e dar sequência ao processo. Para os autores da queixa, no entanto, não restam dúvidas: “As manifestações são completamente legítimas. Mas os bens públicos não podem estar ao serviço de interesses partidários” ou ao “serviço de uma quase rebelião“, explica a mesma fonte ligada ao processo. Os queixosos acreditam que está em causa um “crime de peculato“, depois de as três autarquias terem usado “bens do erário público para fins para os quais não estão destinados”.
A dispensa dos trabalhadores e a cedência dos autocarros das respetivas autarquias são, de resto, assumidas pelos próprios responsáveis autárquicos. Começando por Évora: numa troca de correspondência entre a Barros Sales & Associados e a autarquia alentejana, a que o Observador teve acesso, o presidente da autarquia, Carlos Pinto Sá, assume a responsabilidade da decisão e explica a razão de o transporte ter sido gratuito. O autarca da CDU equiparou o tratamento dado à central sindical ao que costuma ser praticado com as associações. “Têm sido isentos de taxas diversas associações culturais, sociais, desportivas e religiosas, entre outras, e o custo correspondente ao valor da taxa que foi isento”, justificou então o autarca alentejano.
O mesmo se passou com a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo. Num comunicado divulgado quando o caso se tornou público, a autarquia assumiu que “foram cedidas pela câmara municipal duas viaturas para o transporte de trabalhadores“. O executivo camarário liderado por Hortênsia Menino foi particularmente visado depois terem sido divulgadas informações de que o transporte escolar dos alunos de Montemor-o-Novo teria sido desviado para deslocar os funcionários autárquicos até Lisboa, para a manifestação da CGTP. A autarquia negou.
“[As duas viaturas] não fazem parte da frota de transportes escolares” e as eventuais perturbações ao normal funcionamento dos transportes escolares, apenas no período da tarde, “ficaram a dever-se à participação voluntária de trabalhadores na ação de luta da CGTP”, explicou o executivo camarário.
O caso de Vila Viçosa acabou por ser mais complexo. Nem todos os vereadores apreciaram o facto de a Câmara se predispor a ceder de forma gratuita os autocarros ao Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local (STAL), braço da CGTP, e fizeram-no saber. Foi o caso de Inácio Esperança, antigo autarca social-democrata, eleito vereador por um movimento independente. Na reunião camarária em que foi tomada a decisão, Inácio Esperança pediu alguma “parcimónia” no uso dos recursos da Câmara, sobretudo num momento de grandes restrições orçamentais. Manuel Condenado, presidente da Câmara, contrapôs: estavam em causa apenas “uma ou duas centenas de euros“.
Quero ainda dizer que irei votar favoravelmente sempre que os funcionários do município, através do seu sindicato, solicitarem à Câmara Municipal apoio para se manifestarem na defesa dos seus interesses como trabalhadores, para tentarem melhorar as suas condições de vida. O presidente da Câmara Municipal é um defensor intransigente e radical dos direitos de quem trabalha e daqueles que já trabalharam”, acrescentou na altura Manuel Condenado, segundo a ata da reunião a que o Observador teve acesso.
Nessa mesma reunião, Luís Nascimento, vice-presidente da autarquia, eleito pela lista da CDU, acabaria por reconhecer o grande objetivo daquela manifestação: assinalar a queda do Governo de Pedro Passos Coelho. “Esta deslocação a Lisboa, no dia 10 de novembro, prende-se essencialmente com o derrube de um Governo que, durante os últimos quatro anos, foi extremamente nefasto para a política nacional e para os trabalhadores e o roubo que foi feito às finanças das autarquias locais, durante os últimos anos”, disse Luís Nascimento.
Confrontado pela agência Lusa, Manuel Condenado não retirou uma vírgula ao que dissera na reunião camarária. “O executivo cedeu e continuará a ceder viaturas do município, sempre que estejam disponíveis, à estrutura sindical dos trabalhadores” para que estes se desloquem “a manifestações ou outras iniciativas a fim de defenderem os seus direitos laborais”, afirmou o presidente da Câmara de Vila Viçosa, quando o caso se tornou público.
Agora, com o caso no Ministério Público, o Observador tentou contactar os responsáveis das três autarquias e da CGTP, mas não obteve qualquer resposta.