Título: “De Vento em Pipa. Quando a Vinha e o Homem Inventaram Lagoa”
Autora (texto e fotografias): Susana Neves
Tradução: Miguel Castro Henriques
Editora: Câmara Municipal de Lagoa
Páginas: 164, português e inglês
Preço: 30€
Nenhuma época do ano seria mais apropriada do que a actual para se descobrir este livro, publicado por uma autarquia do Algarve e dedicado ao vinho produzido na sua área administrativa, precisamente agora que a sua autora foi convidada pelo próprio presidente do júri que destaca publicações dedicadas a comidas e bebidas para o candidatar a um prestigiado prémio internacional. É que na voragem afinal noticiosa-publicitária em que demasiadas vezes consiste a referência de imprensa ao que se vai publicando no nosso país, as “coisas portuguesas” escapam quase sempre à preguiça centralista, havendo por isso uma altíssima probabilidade de não obterem sequer uns pingos de tinta. E no entanto…
Se bem se lembram, os vinhos de Carcavelos e Colares tiveram recentes reabilitações históricas e de retoma da produção, renovando-se castas e lançando-se no mercado garrafas que trouxeram de volta um brilho da época áurea em que tais localidades regurgitavam vinhos conhecidos e premiados, como nos mostram os seus belos rótulos carregados de medalhas em certames internacionais. A verdade é que também Lagoa foi um centro vinícola de alguma relevância, até na graduação alcoólica — 14,5 %, “a maior de todos os outros vinhos nacionais”, “bebendo-se dois copos começa-se a dar sinal” (pp. 15, 126) — que o consumo regional se encarregou de monopolizar, concedendo ínfima parte às colónias africanas.
Uma casta autóctone, conhecida como Negra Mole, terrenos arenosos propícios ao cultivo de vinha e uma adega cooperativa fundada em 1945 na maré duma campanha salazarista não resistiram, ainda assim, à nódoa imobiliária que desde o início da década de 1960 alastrou naquele lado do Algarve, convencendo muitos produtores vinícolas a venderem os seus terrenos para construção, ou “quando morriam os fazendeiros, ninguém queria ficar com os terrenos à beira-mar porque não tinham árvores e não valiam nada” (p. 136), ou, mais terrível ainda, “arrancaram as vinhas para conseguirem areia para a construção” (p. 137). Agora, esse colapso parece estar a ser um pouco revertido, com quintas antigas ressuscitadas, algumas renovadas e uma busca de requalificação que é de louvar. Lagoa é, aliás, Cidade do Vinho 2016 — uma talvez embriagante designação da Associação de Municípios Portugueses do Vinho.
Para acompanhar e potenciar esse renascimento do vinho de Lagoa, o trabalho de Susana Neves vem em muito boa hora. A investigadora de história botânica, agrária e cultural, que leu Estrabão, Plínio o Velho e outros autores gregos e romanos que descreveram a Turdetânia colonizada há dois milénios “como um paraíso” “extremamente rico em pesca e marisco e abundante em vinho” sabe bem que antes deles já fenícios e cartagineses que por ali haviam estado disseminaram o hábito de produzir localmente e beber vinho, cortando-o com água. O imperador romano Júlio César ordenava aos seus legionários que o bebessem como parte duma dieta saudável e para evitarem ser enfraquecidos por disenterias causadas por águas insalubres.
O rigor científico de Susana Neves levou-a aos achados arqueológicos do sítio romano de Milreu (Estói, Faro), para confirmar na monumental adega e tanque de pisa aí descobertos, “que a plantação e o consumo de vinho acabou por se desenvolver localmente”, e às ânforas da Campânia encontradas em 1878 junto ao rio Arade para nos esclarecer que as legiões romanas instaladas no Algarve começaram por preferir “vinho italiano ao produzido na região” (p. 38). Diferentes declinações e combinações do vinho em farmacopeia, culinária e medicina popular chegaram sem surpresa aos nossos dias, mas devem muito a Baco, seu deus e senhor, como tal produtor de ritos e mitos que também inspirou a literatura de todos os tempos e culturas, entre nós de Gil Vicente em diante.
Os árabes não fizeram menos. Apesar do interdito alcorânico das bebidas fermentadas, o cuidado da plantação da videira alcançou no reino de Silves índices tais que Susana Neves reconhece que “este nível de conhecimento, muito superior ao que os cristãos detinham, irá gradualmente regredir com a Reconquista definitiva do reino do Algarve, em 1249, e a expulsão dos muçulmanos em 1497” (p. 64), pondo em confronto o Livro de Agricultura de Ibn Al-‘Awwâm, do século XII, a Corografia do Reino do Algarve de frei João de São José, de 1577, e até o Livro da Agricultura de Joam Antonio Garrido, de 1749. No Foral de Silves de 1266, o rei D. Afonso II não se refere a vinhas em Lagoa, “por não parecer ainda ser suficientemente relevante”, e dois séculos mais tarde, no Livro do Almoxarifado de Silves, são referidas duas, pertencentes a mouros forros, “obrigados a cultivar as vinhas do rei e a colher o seu vinho” (p. 78). Já na contígua Porches a vinha era abundante, dispondo D. Dinis regras tributárias no respectivo foral de 1286.
Investigação a copo
Susana Neves também atribui o pouco desenvolvimento do cultivo da vinha no Algarve nesses séculos primordiais da nacionalidade ao facto de as ordens religiosas tardiamente instaladas a sul serem “na maioria ordens mendicantes, vocacionadas para o despojamento, a oração e o apoio aos pobres” (carmelitas calçados em Lagoa, em 1550-51), ao inverso do que sucedera a norte, “sobretudo no Douro”, em que a expansão da vinha havia sido protagonizada pelas ordens de Cister (em Tarouca desde 1144) e Beneditina (p. 76). Inventário dos estragos causados pelo terramoto de 1755, “cujo epicentro ocorreu no mar e arrasou Lagoa”, identificaram aí trezes lagares de vinho, permitindo prever um possível crescimento da produção da vinha e do vinho em Lagoa, mas como um mal nunca vem só, os franceses de Junot, a guerra civil e a guerrilha do Remexido pilharam e devastaram tudo, sem dó nem piedade, até 1838.
Apesar disso, logo depois progressos foram feitos nas técnicas de plantação da vinha, como reconhece Silva Lopes em 1841, e na salvaguarda da propriedade privada e higienização das unidades de medida na venda do vinho, através de posturas e leis municipais de 1844. Uma grande caldeira de destilação trazida de Lisboa por um capitão local, em 1856, criou uma moda que fez de Lagoa um importante centro produtor e exportador de aguardente de figo e de medronho no final da década, aumentando-lhe a área vinícola. A Phylloxera devastratix atingiu menos as vinhas implantadas em terrenos arenosos, como sucedeu em Lagoa e Colares, oportunidade dada para que no Algarve então se procurasse melhorar a qualidade dos seus vinhos, um “vinho distinto” na expressão de Sousa Figueiredo num relatório de 1873, onde defendeu, sem evidente sucesso, uma “verdadeira mudança do gosto e das práticas vinícolas e vitivinícolas algarvias que permaneceram inalteráveis durante séculos” (p. 102).
À notável agilidade de Susana Neves como investigadora não escapou a ementa de vinhos bebidos por D. Carlos I, Dona Amélia e comitiva régia na visita ao Algarve em Outubro de 1897, de resto, num momento particularmente decisivo para a complexa exportação dos vinhos nacionais. Poucos anos depois, na exposição universal de Paris 1900 é apresentado Le Portugal Vinicole, um álbum ilustrado a autotipias e premiado com um Grand Prix, em que Lagoa é referida pelo seu autor, o agrónomo Bernardino Cincinnato da Costa, que atribui à Fuzeta (Tavira) o posto de “principal ou pelo menos mais afamado centro vinhateiro do Algarve”, mas em 1906 é em Lagoa que fortes contestações ao proteccionismo dos produtores nortenhos conduzem à criação duma Cooperativa Vinícola do Sul, que dois anos depois aí instala um depósito de vinhos, e a “área cultivada continua a aumentar” (p. 110). Em 1965, 75 % do concelho era vinícola: “ao entrar em Lagoa cheirava-se a mosto a fermentar” (p. 133).
As últimas quarenta páginas deste admirável livro concebido pela designer gráfica Inês Sena — neta de Sena da Silva, filha de António Sena — e impresso numa das melhores gráficas da actualidade, a Guide (Odivelas), são dedicadas a entrevistas com “trabalhadores agrícolas, funcionários da Adega, comerciantes de vinho, enólogos, proprietários, produtores particulares, pescadores”, etc.. Sob o lema “As vozes da vinha”, título deste capítulo final, a erudita familiarizada com livros antigos faz-se repórter, ouvindo testemunhos actuais e transcrevendo-os para memória futura. «É mais fácil vender um vinho do Algarve a um estrangeiro do que a um português. […] Devia haver uma regra que obrigasse os restaurantes do Algarve a terem dois vinhos da região» (p. 148), diz José Sintra, da Garrafeira Sintra, a mais antiga de Lagoa. Susana Neves entrevista por fim Karl-Heinz Stock, alemão de 64 anos, proprietário da Quinta dos Vales, em Estombar, que a contracorrente investiu em vinhos brancos e rosados no Algarve, e Carlos Gracias, presidente da Comissão Vitivinícola do Algarve, apostado na recuperação da Negra Mole, “provavelmente a segunda casta mais antiga portuguesa” (p. 158), que o enólogo Gilmar Brito considera ter “potencial para fazer um vinho com a elegância da Pinot Noir que cresce junto à costa. No Algarve pela proximidade do mar as condições são óptimas” (p. 159).
A Câmara Municipal de Lagoa é, pois, merecedora de felicitações por esta publicação de alta qualidade em todos os aspectos — um exemplo a seguir… Brindemos a isso.