Cerca de 40 minutos separam Lisboa de Torres Vedras, onde está sediada a Comissão Vitivinícola de Lisboa (CVR Lisboa), um intervalo de tempo significativamente mais curto do que aquele que separa a verdade do mito — sabe-se lá há quantos anos se crê que quanto mais velho for um vinho, melhor. Ou que o vinho verde é feito da vindima de uvas que ainda não estão maduras.

A pensar em desfazer ideias falsas, que foram ganhando uma espécie de legitimação com a sua repetição e com o passar do tempo, o Observador falou com Vasco D’Avillez, presidente da CVR Lisboa, para apurar a verdade em nome dos enófilos: porque há brancos capazes de envelhecer bem e porque o vinho tinto até faz bem à saúde, se bebido com moderação.

Eis os 10 mitos a que chegámos:

Quanto mais velho for o vinho, melhor

“Não é bem assim. Só vale a pena envelhecer alguns vinhos”, começa por dizer o presidente da CVR Lisboa, admitindo que embora haja vinhos que façam jus a esse ditado — quem nunca comentou um solene “quanto mais velho, melhor”? –, para um vinho ser bom não tem de ter necessariamente muita idade. Vasco D’Avillez atribui a existência do mito à história vitivinícola ao explicar que, até à década de 1950, a falta de tratamento dos néctares fazia com que os vinhos fossem bebidos mais tarde, depois de o tempo fazer uma espécie de curadoria (nos vinhos de melhor qualidade o envelhecimento corrige muitas coisas). Com o avançar do tempo, conta o homem que está no universo vinícola há mais de quatro décadas, a tecnologia permitiu alterar não só a qualidade dos vinhos mas também o hábito de quem os prefere: “hoje em dia apanham-se as uvas em setembro e outubro. O vinho é feito até dezembro e em março já está nas lojas. Toda a gente os quer porque são novos.”

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Certo que a maior parte dos vinhos é feita para ser consumida num curto espaço de tempo, e há motivos para isso. Um deles é o facto de as pessoas não terem onde guardar o vinho para envelhecer. “Hoje em dia vivemos todos num segundo esquerdo, não temos onde guardar um vinho, só se o pusermos debaixo da cama. Ninguém tem caves com temperatura mais baixa”, comenta o presidente. “A outra razão é que a maior parte das pessoas não quer investir muito em vinho para beber daqui a 15 anos.”Apesar disso, Vasco D’Avillez destaca alguns tipos de vinho do Porto, do LBV ao Vintage, com os quais devemos “perder tempo”, ao permitir que envelheçam no conforto da pipa ou na praticidade da garrafa.

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Vasco D’Avillez trabalha no setor dos vinhos há mais de 40 anos. © HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Um Reserva é sempre melhor do que um vinho normal

Alguém terá tido, um dia, a brilhante ideia de pôr de parte um pouco do vinho que fez e que lhe soube bem no palato — um vinho próprio reservado ao consumo da casa. De uma realidade semelhante terá nascido o conceito Reserva, explica D’Avillez. Atualmente, todas as CVR do país têm uma câmara de provadores, composta por pessoas de olfato e gosto afinado, às quais compete a responsabilidade de determinar quais os vinhos regionais e os Reserva. Mas, às vezes, a diferença não é assim tanta. “Para um vinho ser considerado Reserva [no caso da CVR Lisboa] tem de ter pelo menos mais um ponto. Isto é, para ser regional tem de ter 12 pontos em 20, logo um Reserva terá de ter pelo menos 13”, explica o presidente, salientando ainda que é o próprio produtor que pede para que um vinho seja considerado enquanto Reserva.

O vinho branco não envelhece tão bem como o tinto

“Quando comecei a trabalhar em 1970 na José Maria da Fonseca, que era uma das cinco melhores e mais conceituadas firmas de vinho em Portugal, um dos vinhos que tinha imenso sucesso era um Camarate branco velho [da Quinta de Camarate] — tinha para aí uns dez anos”, recorda D’Avillez. O presidente opta por falar em tendências e pôr de lado o debate sobre a qualidade dos brancos em detrimento dos tintos, explicando que as pessoas, no geral, tomaram gosto ao vinho branco jovem. Hoje em dia assiste-se à produção de vinhos de tom de ouro mais envelhecidos, embora em pouca quantidade. São poucos os vinhos brancos que conseguem envelhecer bem — até porque não são feitos para isso –, mas há castas bem-sucedidas nessa missão, como o Encruzado, no Dão, e a Vital, mais predominante na região vitivinícola de Lisboa e na Península de Setúbal.

O vinho rosé é uma mistura de vinho branco com tinto

Não há cá misturas e, quando a fazer um rosé, o tinto é rei. Isto porque é a película da uva que dá cor ao mosto e, em última análise, ao vinho — as uvas brancas não têm pigmento de cor, mas o mesmo não se pode dizer das tintas. É quase uma regra de três simples: quanto mais tempo o mosto estiver em contacto com a película das uvas tintas, mais cor terá o vinho. “O rosé é um vinho cujo mosto tem menos contacto com as películas das uvas tintas”, explica D’Avillez. “Esse tempo é uma decisão do enólogo, consoante ele queira vinhos com mais ou menos cor”, continua, explicando que atualmente estão na moda os rosé mais claros, que na gíria do vinho são apelidados “olho de perdiz”.

Mas há mais a dizer: as uvas tintas, de tão versáteis que são, conseguem dar menos ou mais cor consoante as castas — as castas tintureiras, que podem ser representadas pela Alicante Bouschet e pelo Souzão, “são capazes de deixar os dentes encarnados durante uma tarde inteira”, brinca o presidente, ao mesmo tempo que sorri e aponta para a boca. A título de exemplo há ainda vinhos brancos feitos a partir de uvas tintas, tal como acontece com a maior parte do champanhe da região francesa Champagne. Em Portugal o exemplo remete para a região da Bairrada, com as Caves Aliança a produzir espumantes com uma formulação que quase parece mágica.

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D’Avillez já foi presidente da ViniPortugal e diretor da Symington. © HUGO AMARAL/OBSERVADOR

O vinho verde é feito a partir de uvas verdes (e não maduras)

Não, o vinho verde não é feito a partir de uvas verdes, ao contrário do que o nome leva a crer. Sobre isso, já antes o presidente da CVR dos Vinhos Verdes, Manuel Pinheiro, explicou ao Observador que a vindima acontece no momento de perfeita maturação da uva. “A cor verde é sobretudo justificada pela paisagem do Minho [a Região Demarcada dos Vinhos Verdes estende-se pela zona tradicionalmente conhecida como Entre-Douro-e-Minho]. Toda a região é verde por causa da enorme quantidade de humidade”, acrescenta D’Avillez. Mais, existem vinhos verdes brancos, tintos e rosados, tal como espumante de vinho verde, aguardente bagaceira e aguardente vínica.

O vinho branco só pode ser servido com peixe e o tinto com carne

Nem tudo é preto (ou tinto) no branco. Acontece que existem vinhos tintos mais leves que, por exemplo, fazem boa companhia a um linguado grelhado, tal como existem brancos mais pesados capazes de um casamento feliz com diferentes tipos de carne. Os últimos são chamados brancos de inverno e, por norma, estagiam em madeira e têm mais corpo, garante D’Avillez. E se há brancos para carne, também há tintos para peixe, como o Pinot Noir, um vinho menos encorpado e com menos cor — a casta equivalente portuguesa é a trincadeira, embora seja raro os produtores portugueses dedicarem-se a vinhos varietais.

O vinho faz mal à saúde

Já diziam as mães desta vida que comer de tudo um pouco faz bem (além de ser a desculpa ideal para, volta e meia, cometer pecados capitais como devorar uma bola de Berlim em pleno areal algarvio). Serve isto para explicar que o truque está na moderação. O mesmo acontece quando se fala em vinhos: “Se bebido com moderação, o vinho tem benefícios para a saúde. A quantidade é, de facto, muito pequena”, diz Vasco D’Avillez, referindo-se a um copo de vinho tinto por dia (há quem refira dois copos por dia).

O tema não é novo e já antes o tentámos explicar no Observador com a ajuda de Conceição Calhau, professora de Bioquímica e Toxicologia Alimentar na Universidade do Porto e investigadora do CINTESIS. Foi ela quem à data argumentou que o facto de o vinho proveniente de castas tintas ser rico em polifenóis faz com que a bebida tenha efeitos antioxidantes e antiflamatórios, além de permitir a diminuição de células tumorais. A isso pode-se acrescentar, entre outras vantagens, a ideia de que a bebida preferida de Baco possibilita alterações microbióticas, ou seja, estimula o aumento de bactérias boas nos intestinos, órgão onde se encontra a segunda maior concentração de neurónios. Claro que nem tudo é bom, com o álcool a ter sempre peso na saúde de uma pessoa, além de que o vinho tinto pode provocar, em alguns casos, dor de cabeça ao fim de dois copos — o porquê não é de todo consensual.

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O atual presidente da CVR Lisboa foi considerado “Personalidade do ano 2015” pela Associação dos Municípios Portugueses do Vinho. © HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Vinhos biológicos são melhores do que os outros

A questão é delicada e D’Avillez responde assim: “Os vinhos biológicos têm uma forma de trabalhar diferente, sem uso de pesticidas. Isso tudo é ótimo: tanto a terra como nós agradecemos essa atitude. No entanto, a maior parte das vezes isto só pode ser feito em pequena escala — é preciso haver muito controlo porque as doenças das vinhas existem.”

Em Lisboa não há vindimas

Em causa não estão as Denominações de Origem da Região Vitivinícola de Lisboa, que compreendem áreas como Carcavelos e Colares, mas a existência de vinhas em pleno centro urbano da capital. E há duas a registar: uma na Ajuda, que pertence ao Instituto Superior de Agronomia, e outra junto à Rotunda do Relógio, a caminho do aeroporto. A última consiste num projeto da Câmara Municipal de Lisboa em parceria com a Casa Santos Lima e pretende ter uma função didática, isto é, mostrar como o vinho é produzido. O novo parque vinícola vai abrir as portas à população já em setembro, o mês que a tradição há muito associa às vindimas. “A câmara tem o desejo de constituir corredores verdes em Lisboa”, acrescenta o presidente da CVR de Lisboa, fazendo referências aos terrenos da CM que podem ser reabilitados, muito à imagem e semelhança das hortas urbanas. “Isto é útil porque ajuda ao pulmão de Lisboa.”

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D’Avillez assumiu ainda funções na José Maria da Fonseca Internacional Vinhos. HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Na hora de escolher, quem tem razão é o crítico

É certo que há quem ganhe a vida a pontuar vinhos ou a harmonizá-los com determinados pratos. Um trabalho louvável e, para uns, invejável. Mas no final — como quem diz no momento em que o vinho chega ao copo –, o que interessa é o gosto de quem prova ou bebe um néctar. É como a velha máxima, por vezes discutível, de que o cliente tem sempre razão: neste caso, um bom vinho é aquele que o consumidor quiser e não necessariamente o que é escolhido pelo crítico ou escanção.