Dois meses após ter aberto as portas, o Restaurante Torreão soma boas avaliações na internet. Seja porque satisfaz o paladar, seja porque as vistas sobre o rio Douro e a zona histórica do Porto são deslumbrantes e, já se sabe, os olhos também comem. O que não está no menu é a história tão rica deste espaço, situado nas Virtudes. Nem a contribuição que cada cliente dá à sociedade quando paga o seu repasto.

Comecemos pelo paladar. O Torreão abriu a 29 de junho e assume-se como um restaurante de comida caseira feita com produtos de qualidade. Serve almoços, jantares e a apetecível esplanada está aberta para quem quer tomar um copo, desde que não haja reservas feitas para a mesma hora.

Por trás do conceito está o chef Carlos Correia, que passou pelo In-Diferente. Era o restaurante portuense favorito de Luísa Neves, a gerente, ligada aos Serviços de Assistência Organizações de Maria (SAOM), a instituição particular de solidariedade social que detém o Torreão, e foi ela quem lhe fez o convite. Mas que não se confunda este projeto de economia social com pratos baratos, como um casal que por ali passou e ficou aborrecido pelos 25€ por pessoa que lhes foi pedido. “O nosso cliente não é o cliente carenciado, mas o dinheiro que aqui fica é para ajudar”. Já lá vamos, que a história merece atenção.

A carta não se alonga porque o objetivo é renovar a cada estação. Por agora é possível encontrar várias entradas, como alheira grelhada de Trás-os-Montes e também alheira vegetariana, e pratos principais como atum de escabeche com batata torneada (12€), folhado de tamboril e gambas com puré de couve-flor (15€) e perna de polvo assada com maionese de alho e coentros (16€). O risotto é de espargos verdes e morcela da Serra da Estrela (12€). Há ainda bochechas de porco preto confitadas com puré cremoso de grão-de-bico e espinafres salteados (13,50€), costeletas de cordeiro de leite com molho de mel e ervas com arroz de carqueja e compota de cebola roxa. O prato vegetariano em destaque é o caril de abóbora com líchias e manjericão (9€).

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O azul das cadeiras é para trazer o rio para dentro de uma sala decorada ao pormenor.
(foto: © Ricardo Castelo/Observador)

Nas sobremesas a oferta alarga-se, com pavlova de ovos-moles e morangos (6,50€), pudim Abade de Priscos com abacaxi (6€), papos de anjo com calda de maracujá (5,50€), mousse de chocolate fumado com frutos vermelhos (6€). Se a vontade é de provar vários, é possível pedir um mix conventual para duas pessoas (12,50€). Em breve haverá um menu executivo ao almoço, com sopa, prato, sobremesa e uma bebida, que pode ser um copo de vinho. O preço será entre 10€ e 12€ e o prato será sempre diferente do que há na carta, para variar.

A vista promete ser uma das maiores atrações do local, onde já se realizavam eventos no terraço. Para além do rio, os olhos também alcançam o outro torreão da Muralha Fernandina, construída no século XIV, em direção à Igreja de São João Novo. A maior parte da muralha já não existe porque só em 1926 foi considerada património, explica-nos Luísa Neves, que é licenciada em História. A parte mais conhecida da construção fica nos Guindais, junto à Sé. O SAOM tem o privilégio de ficar sobre a muralha e de ocupar o que outrora foi um torreão, de onde os portugueses defendiam o território — foi no terraço que se instalou, por exemplo, uma bateria de tropas liberais durante o Cerco do Porto.

Tantas histórias terão passado por aqui. O palacete do século XVIII onde fica a sede do SAOM pertencia ao recolhimento dos monges de São Bernardo. Com a extinção das Ordens Religiosas, no início do século XIX, passou para as mãos do abastado José Alexandre Ferreira Brandão, ligado ao vinho do Porto.

Com o declínio dos negócios, os descendentes de Ferreira Brandão tiveram de arrendar a casa no início do século XX. O novo inquilino passou a ser o Oporto British Club, um dos dois clubes ingleses que existiam na cidade, este dedicado a atividades de lazer e convívio para homens, mas com as senhoras a terem direito a um “Ladies Room” só para elas. Ali ficaram até 1967, altura em que os clubes se fundiram e passaram a sediar-se no Campo Alegre. A casa ficou vazia e, no 25 de Abril, foi ocupada por uma comissão de moradores. Nessa altura instalaram-se por ali o grupo de teatro Pé-de-Vento, um tasco, o jardim foi ocupado por “um indivíduo que recebia e desmontava carros roubados” e o andar de cima era “uma casa de meninas”, conta Luísa Neves.

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Mix conventual: pudim Abade de Priscos, papo de anjo e toucinho do céu
(foto: © Ricardo Castelo/Observador)

Em 1975 o Estado português decide adquirir a propriedade para a Segurança Social que, por sua vez, em 1976 assinou um protocolo com João Rebello de Carvalho, o criador do SAOM. “Achava que a zona histórica do Porto precisava de ter uma infraestrutura de apoio a pessoas mais necessitadas”, recorda Luísa Neves que, nessa altura, estava longe de sonhar que ali trabalharia um dia. O edifício tem um centro de dia para idosos, servem-se refeições a quem precisa, há uma lavandaria social ao dispor de quem mora na rua, num quarto ou numa pensão.

Quando a desertificação da Baixa do Porto deixou à vista uma grande quantidade de pessoas em situação de pobreza e à margem do mercado de trabalho, o SAOM começou a criar um novo projeto, chamado Dar Sentido à Vida. Luísa Neves não é só licenciada em História e gerente do restaurante Torreão. É ela a coordenadora do projeto que, nos últimos 10 anos, deu formação a mais de 200 pessoas em situação de risco, muitas com um passado ligado ao alcoolismo, à toxicodependência e vítimas de violência doméstica. Em 2012, a coordenadora apresentou o projeto numa Ted Talk:

A candidatura ao PROGRIDE (Programa para a Inclusão e Desenvolvimento) rendeu um financiamento a 100% e foram criados cursos nas áreas de Ajudante de Cozinha, Empregado de Mesa e Empregado de Andares e sete cursos pré-profissionais de Iniciação à Pastelaria. “Quando abrimos o primeiro curso, de Ajudante de Cozinha, definimos como parâmetro nivelar por cima: eles têm de sair daqui capazes de ir para o Sheraton”, recorda Luísa Neves. “Toda a gente achava uma loucura, quer dizer, vêm da rua e vão para o Sheraton?”

Hoje, são muitos os formandos que trabalham em hotéis de cinco estrelas e alguns chegaram mesmo até ao Sheraton. Só que, para além da escolaridade, era preciso tratar da apresentação dos formandos. “E o PROGRIDE não financiava dentes”. Era preciso fomentar rendimentos próprios que permitissem custear esse tipo de despesas. Entre 2011 e 2012, o edifício sofreu obras de requalificação de fundo, financiadas pelo Estado, e, por fora, o edifício parece novo. Com instalações cuidadas, puderam criar serviços de catering em eventos e os casamentos, batizados, comunhões e outro tipo de eventos que o SAOM faz no salão nobre. Depois, nasceu a mercearia fina Português de Gema, especializada em ovos-moles, que têm há dois anos na Ribeira, num espaço emprestado. Agora, nasceu o Torreão, cujos lucros servem para que mais pessoas sem perspetivas de futuro possam dar um sentido à sua vida dando um contributo à sociedade.

“Hoje, não precisamos de selecionar quem é que vai ter direito a dentes ou a óculos”, diz, orgulhosa. O SAOM também ajuda com mobília e eletrodomésticos formandos, ex-formandos em recomeço de vida e até alguns utentes idosos em necessidade. “Sou perita em fazer compras no OLX”, confessa Luísa Neves. Todos os funcionários da instituição e do restaurante são ex-formandos.

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A Infanta Elena de Bourbon e Luís Figo almoçaram no salão nobre do SAOM, muito antes do restaurante Torreão existir. Ao centro, na primeira fila, Luísa Neves, a mentora deste projeto. (foto: © Divulgação)

À entrada do restaurante há uma pequena sala de espera com fotografias dos funcionários e dos formandos que por ali foram passando, em eventos ou visitas de personalidades como Cavaco Silva, Sampaio da Nóvoa, Luís Figo e até a Infanta Elena de Bourbon, filha do rei Juan Carlos de Espanha. O trabalho feito tem reconhecimento. Bom prenúncio para o restaurante que agora se abre ao público.

Luísa Neves é um furacão de otimismo e de trabalho. “Ainda sonho com hotel. E com um barco!”, revela. Não para ela, mas para que a associação possa continuar a formar e a dar trabalho a pessoas que um dia estiveram sem rumo. “Andamos aqui a mudar o mundo”, diz. E tanto que ainda há por fazer.

Nome: Restaurante Torreão
Morada: Rua das Virtudes, 37, Porto
Telefone: 91 947 1037
Horário: De segunda a sábado das 12h às 15h e das 19h às 22h (encerra às 23h à sexta e ao sábado)
Preço médio: 25€. Em breve haverá menu de almoço executivo com preço fixo entre 10€ e 12€
Reservas: Aceita
Site: https://www.facebook.com/restaurantetorreao