Quem há um ano apostasse 100 euros na reeleição de Jerónimo de Sousa como secretário-geral do PCP arriscar-se-ia seriamente a ficar sem o dinheiro, tal era a insistência com que lhe apontavam sucessores. O palco da passagem de testemunho até já estava montado: o congresso comunista marcado para o início de dezembro. Agora, quase um ano depois das eleições legislativas, dez meses depois da construção de uma solução que haveria de ser batizada de “geringonça”, no rescaldo da 40.ª edição da Festa do Avante!, tudo indica que Jerónimo de Sousa não vai a lado nenhum, fortalecido por uma solução inédita na história da democracia portuguesa.
Embora poucos queiram falar publicamente sobre a vida interna do partido, entre os comunistas ouvidos pelo Observador a ideia dominante é que se o novo ciclo da história do PCP se iniciou com Jerónimo de Sousa — com mérito próprio do secretário-geral comunista — então não há razões para ser quebrado num momento tão decisivo para o partido e para o país. “A questão da sucessão não se coloca neste Congresso“, assume Edgar Silva, membro do Comité Central do partido e ex-candidato presidencial. “Jerónimo de Sousa continua a ser quem melhor representa o partido e quem tem uma ligação mais profunda ao PCP. Não faz sentido falar em sucessão”, reitera Carlos Brito, ex-dirigente do PCP.
Um ex-dirigente comunista vai ainda mais longe: “A saída de Jerónimo de Sousa seria desastrosa para o partido. Qualquer alteração desta natureza seria muito negativa para o PCP. A questão da sucessão do secretário-geral perdeu força”.
Este ex-dirigente do PCP, que prefere não ser identificado, admite que a ideia de uma passagem de testemunho iminente pode ter sido “fabricada por algum candidato à sucessão“. Por alguém “que o queria fazer descansar mais cedo”. Cansado não estava ele, como provou Jerónimo.
O próprio chegou a desmentir, em diversas ocasiões, os rumores que o davam como demasiado cansado para continuar à frente do partido. Ao mesmo tempo que ia lembrando que a decisão final caberia ao comité central do PCP, o secretário-geral comunista manifestou sempre vontade de continuar. “Estou aqui para as curvas” (Observador). “Por mim estou em condições de continuar” (jornal i); “Já respondi a isso de diversas formas. [O novo quadro político] não alterou esta questão” (Expresso); “[Muita gente entre] os meus camaradas de partido, os amigos do partido e muita gente mesmo que não é do meu partido [considera] que eu devia continuar. Mas isto, como digo, é sempre uma decisão do comité central” (Rádio Renascença).
A estabilidade e os resultados conquistados pela “geringonça” acabaram por reforçar a posição do secretário-geral comunista. Embora o próprio tenha sempre recusado recolher os louros pela solução encontrada no Parlamento, a verdade é que o papel determinante de Jerónimo de Sousa é reconhecido quer na Soeiro Pereira Gomes, quer mesmo entre os parceiros parlamentares do PCP — Ana Catarina Mendes, secretária-geral adjunta do PS, chegou mesmo a dizer que Jerónimo de Sousa demonstrou “vontade de superar-se a si próprio“.
O mesmo empenho de Jerónimo de Sousa na construção desta solução parlamentar é reconhecido pelas bases comunistas. Na 40.ª edição da Festa do Avante!, num debate precisamente sobre a “nova fase da vida política nacional e a luta pela alternativa patriótica e de esquerda”, houve quem celebrasse entusiasticamente a disponibilidade do partido para viabilizar o Governo de António Costa. “Quando ouvi o camarada secretário-geral Jerónimo de Sousa a dizer no dia das eleições que ‘o PS só não formava Governo se não quisesse’ abri uma garrafa de champanhe“, acabaria por dizer uma militante que interveio nesse debate. Não foi a única a deixar essa nota, prova de que o líder comunista tem crédito junto das bases. Seria pouco compreensível quebrar essa ligação agora.
Sucessores de Jerónimo ficaram fora da foto?
Jerónimo de Sousa chegou a secretário-geral do PCP em 2004, sucedendo no cargo a Carlos Carvalhas, então muito desgastado pelas tensões que se geravam no interior do partido entre a linha dos “renovadores” e a ala dos “ortodoxos” — movimentações que o PCP nunca reconheceu e que sempre atribuiu à imaginação da comunicação social.
A verdade é que a linha dos renovadores daria origem à atual associação política Renovação Comunista, criada em 2000, juntando centenas de militantes do PCP que exigiam uma mudança de estratégia do partido — alguns deles acabariam mesmo suspensos ou expulsos do partido. No meio deste processo, a eleição de Jerónimo de Sousa, tido como um “ortodoxo”, acabou por ser interpretada como uma cedência de Carlos Carvalhas à linha dura do partido.
Depois de 12 anos à frente do PCP, o filme parecia agora repetir-se com Jerónimo de Sousa. Na sequência de um resultado aquém das expectativas nas eleições legislativas — os comunistas foram apenas a quinta força mais votada –, começaram a surgir com alguma insistência rumores de um movimento interno que pretendia precipitar a saída do secretário-geral, antecipando o congresso comunista com data marcada para dezembro. Num partido conhecido por deixar as divergências dentro de “casa” este era um sinal que não podia ser desvalorizado.
Na altura, em entrevista ao Expresso, Jerónimo de Sousa deixou bem claro qual era a sua posição em relação à antecipação do congresso. “Eu não vejo razões para o antecipar. O comité central pode ver“. O calendário manteve-se. Um sinal de força do líder comunista.
Mesmo assim, vão-se perfilando os candidatos a sucessores de Jerónimo de Sousa. Francisco Lopes, deputado comunista e cabeça de lista por Setúbal nas últimas eleições, é um dos nomes apontados com maior insistência. Tem um peso considerável no aparelho comunista — faz parte dos três principais órgãos do partido (Comité Central, Secretariado do Comité Central e Comissão Política) — e é um dos homens de maior confiança de Jerónimo de Sousa, com quem, de resto, partilha a geração e a origem — são ambos sexagenários e da linha operária do partido.
Além disso, tem também no currículo uma corrida a Belém, em 2011, o que parece ser um teste de rodagem para os futuros secretários-gerais do PCP — Carlos Carvalhas foi-o em 1991, um ano antes de ser eleito como sucessor de Álvaro Cunhal, e Jerónimo de Sousa também, em 1996, oito anos antes de suceder a Carvalhas, e em 2006, já como líder comunista.
No entanto, e ao contrário do que aconteceu com Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa, Francisco Lopes não conseguiu transformar em votos a confiança do partido — ficou-se apenas pelos 300.921 votos (7,14%), um resultado que só ficou à frente do de António Abreu, com 223.196 dos votos (5,1% dos votos) e, mais recentemente, por Edgar Silva com, 183.009 dos votos (3,9%). Este mau teste eleitoral pode ter hipotecado as suas chances de vir a suceder a Jerónimo de Sousa.
Existem ainda dois handicaps a jogar contra Francisco Lopes: a idade e o facto de representar a linha ortodoxa do partido. “Francisco Lopes não representa nenhuma renovação para o partido“, nota o mesmo ex-dirigente do PCP. “Bem pelo contrário”.
Depois, existem também os “jovens turcos” do PCP: Bernardino Soares, João Oliveira e João Ferreira. Os três com menos de 45 anos, os três com formação académica e os três olhados como os símbolos da renovação dos quadros do partido.
Bernardino Soares, de 44 anos, foi líder parlamentar do PCP até reconquistar a Câmara de Loures em 2013, uma autarquia que fugia aos comunistas há 12 anos. E tirou-a aos socialistas, contrariando a onda vencedora de António José Seguro nessas eleições. Foi uma vitória estrondosa.
A saída de Bernardino Soares abriria espaço para a ascensão de outro jovem quadro do PCP: João Oliveira, que o substituiu no cargo de líder da bancada parlamentar comunista. Três anos depois, João Oliveira, de 37 anos, é um dos homens de maior confiança política de Jerónimo de Sousa e tido como um dos grandes “abre-latas” do acordo à esquerda.
João Ferreira, por sua vez, alcançou nas europeias de 2014 um grande resultado para os comunistas, subindo para três o número de eurodeputados da CDU. Jerónimo de Sousa, inclusive, já lhe reconheceu o mérito. “Dedicou-se a um trabalho profundo, nunca desligado da realidade nacional e, pela sua capacidade, empenhamento e trabalho, mais do que pela sua figura, é um candidato à altura das responsabilidades que a CDU lhe coloca”, chegou a dizer. E isto já depois de João Ferreira ter sido testado como candidato à Câmara Municipal de Lisboa, em 2013.
Currículo não lhes falta, mas contra eles parece jogar o facto de serem “ainda muito novos”, sublinha a mesma fonte comunista. “É muito cedo para eles. Têm pouca relevância no aparelho“. Um ponto válido: Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa foram eleitos pela exigente e conservadora máquina comunista quando já tinham 51 e 57 anos, respetivamente.
Feitas as contas, Jerónimo de Sousa tem algum sucessor que reúna a dose certa de renovação e experiência política? “Por enquanto não acho que haja. Não vejo uma alternativa a curto prazo para Jerónimo de Sousa“, assume o ex-dirigente comunista.
A Festa do Avante! costuma encerrar em si mesma pistas sobre o possível sucessor do secretário-geral comunista em funções. As fotografias das diferentes edições parecem contar um filme em andamento. Foi assim com Carlos Carvalhas, em 1991, quando acompanhou de perto Álvaro Cunhal durante toda a Festa do Avante!. Não houve objetiva que não o encontrasse em primeiro plano. O mesmo aconteceu com Jerónimo de Sousa: em 2002, surgiu ao lado de Carlos Carvalhas em lugar de grande destaque. Dois anos depois seria eleito secretário-geral do PCP.
Este ano, no entanto, o líder comunista começou e encerrou a 40.ª edição da Festa do Avante! sem nenhum dos herdeiros anunciados a seu lado. Se existem sucessores, ficaram fora do quadro geral. Vale o que vale. O tempo dirá se esta foi uma coincidência ou um prenúncio de que Jerónimo está para durar na liderança do partido.
Vem aí um número dois?
Apesar de uma passagem de testemunho ser, neste momento, aparentemente pouco provável, Jerónimo de Sousa admitiu, em entrevista ao Expresso, que no congresso comunista “pode haver alteração de responsabilidades” na liderança.
Podia ser uma pista: os comunistas podem começar a desenhar a sucessão de Jerónimo de Sousa já no próximo conclave comunista, elegendo um secretário-geral-adjunto, algo que neste momento não existe na estrutura do partido.
Aliás, a figura de secretário-geral-adjunto nem sequer é nova na história do PCP. Em 1990, Carlos Carvalhas foi eleito número dois de Álvaro Cunhal quando o histórico líder comunista preparava já o caminho para a próxima geração. O futuro dirá se a solução para o partido não passa por repetir o modelo deixado por Cunhal.
Curiosamente, hoje, como em 2004, quando alguns setores do PCP pediam a renovação do partido, Jerónimo de Sousa teve uma frase que marcaria o início de um novo ciclo: o recém-eleito secretário-geral comunista aconselhou os críticos que pretendiam “a descaracterização do partido” a pôr “as barbas de molho”. Pode ser que repita o aviso em 2016. Seja qual for o desfecho, dezembro será um mês decisivo para a história dos comunistas.