Há dois meses, o país estava eufórico com a vitória da seleção nacional no Europeu de futebol. Quando o júbilo desportivo serenou, veio a tempestade política. Em agosto surgiram notícias de viagens pagas a governantes, deputados e autarcas para assistirem aos jogos da reta final do campeonato, em França. Houve explicações a quente e um código de conduta feito pelo Governo que demorou um mês a sair, fixando um limite para ofertas que os políticos podem receber: 150 euros. O Observador fez as contas ao valor de mercado das viagens e dos bilhetes para os jogos a que Fernando Rocha Andrade foi assistir e a diferença é quase 15 vezes superior.
Há outras dúvidas por esclarecer em todo este caso: sendo possível saber o valor do pacote que a agência Cosmos cobrava aos clientes (1.400 euros para a final em bilhetes de categoria 2), não se sabe quanto é que os governantes devolveram à Galp. Os governantes, deputados e autarcas envolvidos resistem a dar respostas conclusivas sobre um assunto que o Governo se apressou de classificar de “encerrado”. Mas que depois disso continuou na agenda pública porque ainda há perguntas por responder.
Quanto é que os governantes pagaram pelas viagens e bilhetes?
Vários membros do governo tentaram, logo nas primeiras horas, esvaziar o balão da polémica. No mesmo dia em que se soube que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais tinha viajado até França a convite da Galp, Rocha Andrade garantiu que ia devolver à petrolífera o valor correspondente à deslocação. “Para que não restem dúvidas sobre a independência do Governo e do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o Secretário de Estado contactou a Galp no sentido de reembolsar a empresa da despesa efetuada”, referia na altura o Ministério das Finanças.
Além de Rocha Andrade, outros dois secretários de Estado estão envolvidos no caso: João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria (que responde perante o ministro da Economia), e Jorge Costa Oliveira, secretário de Estado da Internacionalização (sob tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros). Também estes dois membros do Governo se comprometeram com a devolução do”presente”. O Governo garantiu que os três secretários de Estado já restituíram à Galp a verba correspondente à “despesa efetuada”. Mas persistem dúvidas.
Por exemplo: quais os valores em causa em cada uma das viagens? O Observador fez as contas ao preço dos bilhetes para os jogos a que Rocha Andrade assistiu, mas esse valor nunca foi confirmado de forma oficial pelo Governo ou pela Galp. Para qualquer cidadão que quisesse assistir aos dois jogos que Rocha Andrade teve oportunidade de ver através da agência de viagens Cosmos (Portugal-Hungria, da fase de grupos, e Portugal-França, da final), teria de pagar 2.190 euros para bilhetes de categoria 2, que nem eram os mais caros. O valor resulta da soma de 1.400 euros (valor do pacote de bilhete de categoria 2 para a final, mais avião e transfer) a que se somam 790 euros (bilhete de categoria 2 para fase de grupos mais avião e transfer).
O valor é, assim, 14,6 vezes superior ao limite máximo de 150 euros que o Governo acabou por estabelecer no Código de Conduta para os governantes seguirem em casos como os do Europeu.
O silêncio sobre os valores estende-se ao momento e à forma como essa verba terá sido restituída à petrolífera. Rocha Andrade já pagou? Na semana passada, questionado sobre as implicações da polémica, o ministro dos Negócios Estrangeiros — que assumiu a condução do governo na ausência de António Costa, de férias — limitava-se a dizer que não era contabilista. Dos outros dois secretários de Estado envolvidos no caso, também não há confirmação do valor da restituição.
Os secretários de Estado perdem o “dossiê” Galp?
Regressado de férias, António Costa também foi célere em decretar, mais uma vez, o assunto “encerrado“. Menos de uma semana depois das primeiras notícias terem sido publicadas, o primeiro-ministro recuperava a posição de Augusto Santos Silva sobre o tema para dizer que, ressarcidas as despesas à empresa, e anunciadas “as medidas que foram adotadas e que estão a ser adotadas”, não havia mais nada a acrescentar.
O assunto estará realmente arrumado? Dentro do Governo, as alterações fizeram-se sentir. Mas apenas a um terço. De acordo com o Código de Procedimento Administrativo, os secretários de Estado envolvidos na polémica estão impedidos de tomar decisões sobre assuntos relacionados com a petrolífera. Augusto Santos Silva anunciou de imediato que as decisões do secretário de Estado da Internacionalização sobre a Galp deixavam de estar na sua tutela e passavam a ser despachadas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. Quanto aos outros dois governantes, nem o ministro das Finanças nem o da Economia tomaram qualquer decisão. Apesar disso, o próprio Presidente da República fez notar a António Costa que os três governantes não reuniam condições para participar em matérias relacionadas com a Galp.
Mas as mudanças poderão não ficar por aí. Na edição deste fim de semana, o semanário Expresso antecipava que o tempo de Rocha Andrade no Governo poderia ter os dias contados. A aprovação do Orçamento do Estado para 2017 seria a data-limite para uma eventual remodelação.
António Costa não abre o jogo. Publicamente, o primeiro-ministro continua a assumir “total confiança política”, quer em Rocha Andrade quer nos outros dois secretários de Estado que aceitaram o convite da empresa.
Mas o caso já chegou à Justiça. Como o Código Penal criminalizou em 2010 o recebimento de ofertas indevidas, a Procuradoria-Geral da República abriu uma investigação. O Ministério Público realizou no final de agosto buscas aos escritórios da Galp e à agência de viagens Cosmos, propriedade do empresário Joaquim Oliveira, que tem contrato com a Federação Portuguesa de Futebol e é credenciada na FIFA e na UEFA. Não foram constituídos quaisquer arguidos, mas foram recolhidos “elementos”.
Qual a data e o valor das faturas?
O caso levantou dúvidas sobre as deslocações de outros quatro deputados (todos os PSD) a França, para assistirem às partidas da seleção nacional: Luís Montenegro (líder da bancada parlamentar), Hugo Soares (vice-presidente da bancada social-democrata) e Luís Campos Ferreira (ex-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros) estiveram em Lyon e em Paris para assistir a partidas da seleção nacional, mas garantem ter suportado “por sua conta” todos os gastos “das respetivas deslocações”, desmentindo a notícia do Observador de que tinham ido a convite de Joaquim Oliveira — dono da Olivedesportos e da agência Cosmos –, e amigo dos três.
Noutro plano, o social-democrata Cristóvão Norte também assistiu a um jogo, mas entende que o convite não tinha “natureza institucional”, por ter sido oferecido por um amigo seu, funcionário da Galp.
Não se sabe quanto é que cada um daqueles três deputados do PSD pagou pelas viagens nem pelos bilhetes para os vários jogos, uma vez que o email que desmentia a notícia do Observador — sem qualquer timbre do partido — apenas referia as deslocações e omitia quaisquer valores. Os deputados também nunca explicaram como é que estavam na bancada VIP em alguns jogos (pelo menos Luís Montenegro e Hugo Soares). Em representação de quem? Ou através de que convite, uma vez que não são comercializados bilhetes para a bancada VIP, ao que o Observador pode apurar. Por exemplo, Pedro Passos Coelho, líder do maior partido da oposição e ex-primeiro-ministro, assistiu à final na bancada junto aos adeptos.
Na sua penúltima edição, o Expresso dava conta de que o presidente da bancada parlamentar do PSD tinha apresentado as faturas comprovativas do pagamento de quatro deslocações a França. Problema: o documento não tinha data visível — e o jornal não publicou quaisquer valores.
E os autarcas já devolveram o dinheiro ou pediram escusa nas decisões sobre a Galp?
Álvaro Beijinha, autarca de Santiago do Cacém eleito com apoio da CDU, e Nuno Mascarenhas, autarca de Sines eleito pelo PS, partilharam o mesmo voo que levou Fernando Rocha Andrade a Lyon, no dia 22 de junho, para assistirem ao jogo Portugal-Hungria.
A informação foi avançada pelo Observador a 9 de agosto, depois de ter tentado contactar, sem sucesso, os dois autarcas. A notícia motivou reações políticas, com o PCP a demarcar-se de Beijinha, lembrando que o candidato era independente, e com o Bloco de Esquerda a exigir explicações aos dois responsáveis.
Com a pressão a aumentar, os autarcas acabariam por justificar-se argumentando, em linhas gerais, que aceitaram o convite por causa das boas e antigas relações que os dois municípios têm com a refinaria e garantido que mantêm total “independência e imparcialidade” em relação à empresa. A Galp, refira-se, é a maior empresa do concelho de Sines, com grande influência no concelho vizinho de Santiago do Cacém, até pelo número de pessoas que emprega.
No entanto, e apesar da insistência do Observador, os dois responsáveis nunca responderam a questões concretas, como, por exemplo, se chegaram ou não a restituir os valores à Galp ou se pretendem fazê-lo. Nem tão pouco explicaram o que vão fazer em relação ao impedimento de tomarem decisões sobre a empresa, segundo o Código de Procedimento Administrativo.
Quanto é que a Galp cobrou e como faturou?
De um lado, governantes e responsáveis políticos. Do outro, claro, a própria Galp. A petrolífera ofereceu viagens e bilhetes a governantes e responsáveis políticos que dizem já ter restituído esses valores.
Como é que essa entrada de verbas se gere, internamente? E como é que esses valores foram cobrados? Na única posição pública que assumiu até agora sobre o caso, a petrolífera considerou que é prática “comum” convidar para eventos do género figuras e entidades que se encontrem no seu âmbito de atuação. “A única coisa que pretende com todos e com cada um destes convites é fomentar o espírito de união em torno da seleção nacional”, referiu a empresa logo a 4 de agosto, por ser a patrocinadora oficial da equipa que se sagrou campeã da Europa.