A política é narrativa e cada político conta a sua versão da história durante os discursos em que comunica com os eleitores. O discurso é tudo: palavras, gestos, intencionalidade e ainda aspetos incontroláveis, como as muletas de linguagem. Veja em cima o vídeo com um discurso de António Costa em slow motion — assim, pode reparar não só na retórica, mas também nos detalhes da linguagem corporal do primeiro-ministro e líder do PS. Neste texto, identificamos uma palavra-chave do seu eixo de comunicação, explicamos como prepara os discursos e evidenciamos as bengalas de linguagem. (Vídeo de Pierre Mollier e montagem de Fábio Pinto)

Palavra-chave

“Desigualdade”

Desigualdade era o tema da conferência com que o PS marcou a rentrée política (em Coimbra, a 17 de setembro) e foi também a marca no discurso de António Costa que dividiu o “combate às desigualdades” por cinco áreas de ação. Começou rapidamente pela “coesão territorial”, para falar na necessidade da “erradicação da pobreza” e da redução das desigualdades, colocando-os como “desafio estruturante para o país”. Demorou-se mais na educação, ou na “igualdade no acesso ao conhecimento”, com metas concretas para o pré-escolar, que quer universalizado, para crianças até aos três anos, no próximo ano letivo, e da educação de adultos. Doseava “igualdade” com “dignidade”, aproveitando para criticar o anterior Governo, que deixou o país a viver num estado de “grande anormalidade constitucional e de vida” e também para introduzir o ponto seguinte: reposição de rendimentos e justiça fiscal.

A igualdade seria também para aplicar ao nível da cobrança do Estado, com Costa a ditar que vai aumentar as pensões mais baixas, levantar o sigilo bancário dos saldos bancários com valor mais elevado e exigir mais a quem tem mais património (não vai cingir-se ao rendimento). O ponto seguinte foi a saúde: os socialistas não estão cá só para gastar, uma resposta à direita que acusou de “detestar” o Estado Social. Fechou a sua cartilha de combate às desigualdades com a “inclusão das pessoas com deficiência” e a defesa de uma “prestação única”. Fechou com a garantia — repetida do discurso da semana anterior, na rentrée da JS — que o PS não está no Governo “apenas para gerir a conjuntura”.

Como Costa prepara os discursos?

O speechwriter de si mesmo

Esta descrição é imprópria para fãs da série americana The West Wing, em que o presidente Jed Bartlet tinha um gabinete acelerado, dinâmico, grande e mordaz q.b., que preparava cada linha das suas intervenções, estudava cada um dos seus passos e testava com ele todos os argumentos possíveis e imaginários. Feito o aviso, vamos a António Costa, o socialista que está à frente do Governo e que prepara, ele mesmo, as suas intervenções. Muitas vezes até já depois de sair do gabinete.

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Não há telepontos — como havia no tempo de outro socialista em São Bento, José Sócrates –, não há reuniões para testar argumentos, não há uma equipa a pensar em cada linha. Só há discursos escritos em alguns momentos (nos debates quinzenais, cujo tema é escolha do Governo). A regra é ter algumas notas escritas em cartões que vão orientando a intervenção. Na preparação, Costa até pode procurar contributos para as intervenções que faz, consoante os temas que vai abordar (consulta, por exemplo, os membros do Governo ou os assessores mais adequados à área de governação de que vai falar, para pedir dados específicos), mas não há um speechwriter, além dele mesmo.

A centralização ainda é maior quando se trata de discursos partidários, como o caso do que foi realizado no último sábado, em Coimbra. Aí, o gabinete do primeiro-ministro não entra mesmo e até o controlo do tempo da intervenção é feito de forma muito informal. Na conferência socialista, no Convento de São Francisco, a dado passo do discurso, a assessora do partido subiu para o estrado onde estavam alinhadas as câmaras de televisão prontas para entrar em direto e, nas costas dos repórteres de imagem, acenou com um casaco cor-de-rosa forte no ar. Era o sinal combinado para Costa saber que naquele momento estava em direto nas televisões. Nesse segundo, reorganizou rapidamente as ideias e o discurso seguiu para um ataque cerrado ao anterior Governo. Para saber que estava na hora de fechar a intervenção — ao fim de 30 minutos no palanque –, Costa foi igualmente avisado com sinais da assistência feitos pela mesma assessora e de imediato recorreu à expressão “e é por isso” (ver em baixo as muletas mais usadas pelo socialista) para concluir o discurso.

António Costa tinha acabado de chegar de Bratislava, da cimeira sobre o futuro da União Europeia, seguindo logo para Coimbra. Quando partiu para a capital da Eslováquia foi, obviamente, documentado com um dossiê preparado pelo seu gabinete. Mas, para o palco socialista daquele dia, o líder do partido (militante desde os 14 anos e dirigente de topo também desde muito cedo), usa a experiência e o conhecimento aprofundado que tem de todos os que estão à sua frente. “Está como peixe na água”, diz um seu colaborador. Não faz qualquer preparação especial. Costa ensaia conteúdos sobretudo quando está em causa uma intervenção especial, como no Congresso do PS, ou nas campanhas eleitorais. Aqui já testa argumentos, pede conselhos e, nas legislativas de há um ano, não dispensava Ana Catarina Mendes, Duarte Cordeiro ou José Manuel dos Santos (foi assessor de Eanes, Soares e Sampaio e manteve-se como um dos conselheiros de Costa) e Duarte Moral (ex-jornalista que foi seu assessor muitos anos).

Nesta “naturalidade” que procura nas suas intervenções — segundo dizem os próximos — inclui-se a escolha do guarda-roupa. Aos fins de semana, por vezes, o socialista dispensa o fato. Não foi o caso do último sábado (ainda assim, estava sem gravata), mas há duas semanas, na rentrée da JS, discursou de blusão azul-escuro. Quando foi votar nas últimas presidenciais, por exemplo, levou um colete impermeável almofadado que foi amplamente comentado. No gabinete não há conselheiros de imagem especializados mas, por vezes, dão-lhe opiniões. Costa não faz caso disso, diz que sim mas veste como quer.

Há outra imagem de marca: alguns problemas de dicção que se tornam erros de português. Com muita frequência, nos discursos de António Costa, legislatura vira “leslatura”, Lisboa é “Lesboa”, precariedade é pronunciada “precaridade”, empreendedorismo torna-se “emprendorismo” e competitividade passa a “competividade”. A pronúncia está longe de ser perfeita: Costa come letras e até sílabas inteiras e no seu staff dizem que isso acontece quando “está mais cansado e quando está menos focado”. Certo é que acontece muito, mas não há conhecimento de alguma vez o socialista ter procurado aulas de dicção para aperfeiçoar a técnica. Também nisto prefere fazer à sua maneira — já diziam os Xutos, na música que foi usada na campanha do socialista.

Muletas de linguagem

“Nós sabemos” que “é por isso” que vamos “virar a página”

“E é por isso”, eis uma das expressões preferidas de António Costa para passar de um assunto para o outro durante as suas intervenções. Ou então: “Virar a página” — foi, durante meses e meses, sobretudo nos primeiros tempos de Governo (e de campanha também) o lema de António Costa. Repetia-o a cada intervenção para dar garantias de que, com o seu Governo, as políticas seriam diferentes das do Executivo PSD/CDS e o “virar a página” aparecia sempre conjugado com a palavra “austeridade”. “Virar a página à austeridade” é a expressão antecessora da que vem já a seguir…

“Não estamos conformados” é o lema socialista da rentrée. Costa repetiu a mesma ideia na rentrée da JS, em Braga e agora na rentrée do PS, em Coimbra. A fórmula é a seguinte: “Não estamos conformados”, diz Costa quando faz o balanço da governação socialista, para logo a seguir afirmar: “Não estamos aqui só para gerir a conjuntura. Este é o tempo de fazermos reformas essenciais para resolver os problemas estruturais da sociedade portuguesa”.

“Ao contrário do que dizem” é uma fórmula que o líder socialista usa muitas vezes para responder às críticas sem ter de as referir diretamente e sobretudo sem ter de referir a sua origem. Fala em abstrato e contrapõe com o argumento que quer que os socialistas usem nesse combate. “Nós sabemos” é outra muleta recorrente para começar uma ideia, qualquer que ela seja.

Outra fórmula que repete é “temos bons motivos”, que já usou em todo o tipo de contextos. Em junho passado, por exemplo, acreditava haver “bons motivos para estar entusiasmado” com a seleção nacional de futebol, que estava a disputar o Euro 2016. Confirmou-se, já que dias depois, na véspera da final, via “bons motivos” para os portugueses acreditarem na vitória. No congresso do PS no início desse mês, considerava haver “bons motivos para ter confiança naquilo que é o futuro”. E em julho via “bons motivos para não haver sanções”. Já em agosto de 2015, ainda na pré-campanha, o líder socialista acreditava que o país tinha “bons motivos para estar agradecido ao setor da restauração”, quando prometia a baixa do IVA.