Palavra-chave
“Esquerda”
Não é grande novidade. Jerónimo de Sousa e outros dirigentes comunistas já o disseram e repetiram de uma ou de outra forma. Mas o contexto em que foi dito torna-o mais relevante. No comício de encerramento da 40.ª edição da Festa do Avante!, a primeira que o PCP celebrou como fazendo parte de uma solução de poder e o grande palco da rentrée comunista, o secretário-geral do partido fez questão de se demarcar mais uma vez do Governo socialista e da atual maioria parlamentar com uma ideia, para chamar a atenção dos mais distraídos: este Governo é do PS e não da esquerda.
“O atual quadro político traduziu-se não na formação de um governo de esquerda” ou de uma “maioria de esquerda na Assembleia da República”, mas sim “na entrada em funções de um governo minoritário do PS com o seu próprio programa” e na “existência de uma relação de forças em que PSD e CDS estão em minoria”.
A intenção de criar uma separação não poderia ser mais evidente, mas o secretário-geral comunista fez questão de reforçar a mensagem, como nunca o tinha feito: o PCP, disse Jerónimo, não é uma “força de suporte ao Governo por via de um qualquer acordo de incidência parlamentar”, tendo apenas contribuído para que o “Governo [socialista] iniciasse funções e desenvolvesse a sua ação”.
Falando dentro e para dentro de “casa”, Jerónimo de Sousa respondia assim às angústias de alguns militantes comunistas, que continuam a achar a solução encontrada insuficiente. Com um PS “bloqueado” entre dois objetivos inconciliáveis — cumprir as regras europeias e responder aos problemas estruturais do país –, não existe um Governo de esquerda, nem tão pouco uma maioria de esquerda, salvaguardou Jerónimo. O que existe apenas é o compromisso de devolver direitos e rendimentos e travar “o curso para o desastre económico e social que vinha sendo imposto”. É “esse o compromisso que importa [ou resta] cumprir”.
A independência do PCP, no Parlamento e na “geringonça”, mantém-se inamovível, vai garantindo o líder comunista. E o PS tem de prestar contas ao PCP.
Como Jerónimo de Sousa prepara os discursos
A força do coletivo
No PCP, atendendo à própria natureza organizativa do partido, a construção dos discursos obedece a um processo coletivo de deliberação. É isso mesmo que explica fonte oficial do partido ao Observador. “As intervenções do secretário-geral traduzem a consideração que coletivamente é realizada pelos organismos no partido. Na base da análise coletiva, é o secretário-geral que identifica os elementos essenciais da estrutura e desenvolvimento de conteúdos, com o apoio mais direto da estrutura de apoio do trabalho ao secretário-geral”.
Ainda assim, o líder comunista assume o protagonismo natural de quem está à frente do partido desde 2004. Operário metalúrgico de profissão, Jerónimo de Sousa nunca teve qualquer formação especial em comunicação. “Se treino se pode chamar, foi a participação no movimento associativo, cultural e sindical que permitiu uma aprendizagem e o desenvolvimento de características pessoais”, explica a mesma fonte comunista, admitindo, mesmo assim, que Jerónimo de Sousa teve de corrigir alguns aspetos, “mais na forma e no tom, não tanto nos conteúdos”.
Mas se há coisa que distingue Jerónimo de Sousa dos restantes líderes partidárias é o gosto (e o talento) por uma boa expressão popular. É o sound bite em estado puro e, regra geral, não vem na versão oficial dos discursos. Foi assim na 40ª edição da Festa do “Avante!”, quando Jerónimo descreveu PSD e CDS “como aquela senhora que vende bolas de berlim e diz: ‘Chora menino, chora, que a mamã compra’“.
Num discurso de cerca de 50 minutos, sob um calor tórrido, esta acabaria por ser uma das alfinetadas a pontuar a intervenção do líder comunista. E tudo para finalizar com mais um golpe político ao adversário: “[Choram, mas] o povo português não vai comprar este regresso ao passado, o povo português não quer o regresso do Governo PSD/CDS.
Longe de ser um partido obcecado pela agenda mediática — e esse é, de resto, um ponto de honra para os comunistas — o PCP sabe que deve “acompanhar” a “evolução tecnológica e comunicacional” que o rodeia, salvaguarda a fonte do partido. Mas sem nunca “abdicar” da sua identidade. Sem nunca “deixar de ser, para tão só parecer”.
As bengalas de linguagem
“Bom… portanto… enfim… portanto… digamos que… portanto”
É um daqueles bordões linguísticos com lugar cativo no léxico de qualquer português — incluindo Jerónimo de Sousa. O secretário-geral comunista não resiste à tentação de pincelar cada frase — e não é exagero — com um clássico “portanto”.
Ainda assim, admita-se: Jerónimo de Sousa introduz a expressão em diferentes formulações. Ora sai um “não, portanto” em resposta a uma pergunta mais complexa, ora, mais à frente, quando é preciso reorganizar as ideias, lá surge como solução de recurso um aceitável “digamos que, portanto”. Na hora de tabelar um honesto “bom, isso não é bem assim” ou um “enfim, devemos reconhecer que”, o líder comunista também não hesita e lá vem outro “portanto”.
Tomando como exemplo a entrevista que o líder comunista deu ao Observador, a 21 de maio de 2015, Jerónimo de Sousa utilizou a expressão “portanto” em 183 ocasiões. Numa entrevista de 46 minutos, dá uma média de quase quatro “portantos” por minuto. Muitas vezes pronunciados “p’tant”. É um número assinalável. Mas atire a primeira pedra quem, portanto, nunca usou o “portanto” que está mais à mão.