Há três coisas que São João da Madeira conhece como ninguém: rotundas, chapéus e sapatos. Antes de ser conhecido como o menor município do país com mais rotundas — tem mais de 120 –, a cidade de Aveiro já era apelidada de capital do calçado e dos chapéus. A culpa é dos ténis Sanjo e dos chapéus Joanino que, na década de 1960, vestiam Portugal da cabeça aos pés. Logo não será de estranhar que a inauguração do tão aguardado Museu do Calçado seja um motivo de celebração para os sanjoanenses. Depois do Museu da Chapelaria, desta vez presta-se homenagem à mais respeitada indústria de calçado do país e uma das mais promissoras dentro do setor a nível internacional — a casa de criadores como Miguel Vieira e marcas como a Josefinas e Undandy.
Depois de muitas voltas (às quais a cidade das rotundas está habituada), “a oferta museológica de São João da Madeira está finalmente completa da cabeça aos pés”, diz Suzana Menezes, diretora do Museu do Calçado, entre risos. “Durante seis anos dedicámos-nos a estudar o calçado do período da pré-história, passando pelo século XX, até à atualidade”, explica ao Observador a também responsável pelo Museu da Chapelaria. Assim nasceu um novo espaço cultural na Torre Oliva onde, em 1950, os operários chegavam de Oliveira de Azeméis e Santa Maria da Feira para trabalhar nas indústrias chapeleiras. Em 2016, esta expõe uma mostra sobre a marca Oliva e, desde sábado, 500 sapatos de se tirar o chapéu.
Antes de entrar no museu, encontra “o sapato mais famoso da história: o da Cinderella”, diz Suzana Menezes, começando a fazer a visita guiada. Só mais à frente é que fica a sala de exposições temporárias onde o designer Luís Onofre é o primeiro de muitos convidados a contar a história da sua carreira. Formado em estilismo no Centro de Formação Profissional da Indústria de Calçado, o “maior ícone nacional do calçado” partilha a evolução dos sapatos que já chegaram aos pés de Letizia Ortiz e Naomi Watts, desde a lambreta usada pelo pai para fazer entregas aos botins de Michelle Obama. “Uma história de paixão, herança e resiliência” que resistiu à crise económica e transformou Luís Onofre numa referência do setor além-fronteiras.
Entre croquis, moldes, gáspeas, solas e saltos, está dado o pontapé de partida para o primeiro núcleo da exposição permanente: a produção. O objetivo? Dar a conhecer a indústria da produção de calçado que moldou várias gerações de famílias em São João da Madeira desde o esboço em papel aos acabamentos. “O museu recria dois momentos históricos: a produção artesanal e a produção industrial através de uma unidade fabril dos anos 1980 e uma oficina tradicional do início do século XX”, conta Suzana. A viagem continua por um túnel do tempo que conta a evolução do calçado com 20 réplicas de pares de sapatos desde a pré-história ao século XX. Segue-se uma reflexão sobre o sapato e o design no que toca às tendências do século XX e XXI.
A visita não acaba antes de encontrar as sapatilhas (sim, os sanjoanenses não dizem ténis) mais famosas das décadas de 70 e 80. É ao longo de um corredor branco da sala de designers e marcas que encontra uma montra dedicada às Sanjo, nascidas na secção de borracha da Empresa Industrial de Chapelaria, em São João da Madeira. Está lá a bota de lona K100 que, antes de sucumbir à concorrência de marcas internacionais, calçou os portugueses de todo o país. À lista juntam-se propostas de outras marcas nacionais, designers internacionais e jovens criadores: os ténis de Hugo Costa, as sabrinas das Josefinas e os compensados Jeffrey Campbell. Ah, e também estão a chegar as reconhecidas solas vermelhas de Christian Louboutin. “Está aqui o melhor do que se faz na indústria”, garante Suzana Menezes.
Do museu fazem parte ainda coleções das marcas Melissa, Miguel Vieira e Havaianas e também sapatos de famosos como um par cedido pelo atual secretário-geral da ONU, António Guterres, os sapatos vermelhos usados por Dorothy no filme Feiticeiro de Oz e os ténis gastos do sanjoanense David Santos, conhecido como Noiserv. “São pares de sapatos notáveis porque guardam histórias notáveis e contam várias experiências de vida.” A despedida está marcada na última área expositiva — o calçado com arte — onde nenhum sapato se calça. Este deixa de ser um objeto de desejo (e de consumo) para se transformar num objeto artístico.
Com curadoria do pintor Vitor Costa, encontra quatro dezenas de obras de arte contemporâneas de artistas como Agnès Baillond e Saint Silvestre. “São mensagens fortíssimas de análise social e cultural através de arte em múltiplas formas como fotografia, escultura, pintura e vídeo-arte”, diz a diretora do Museu do Calçado. Aqui, o sapato é reinventado enquanto peça de arte para incentivar a reflexão sobre um dos principais produtos de exportação nacional e um dos setores económicos mais interessantes do país — mesmo que não dê tantas voltas como os habitantes de São João da Madeira.
O quê? Museu do Calçado
Quando? De terça a sexta, das 9h às 12h30 e das 14h às 18h; sábado das 10h às 13h e das 14h às 18h; domingos e feriados das 10h30 às 12h30 e das 14h30 às 18h.
Onde? Torre da Oliva (Rua António José de Oliveira, 591, São João da Madeira)
Quanto? 2€ (entrada gratuita até 31 de dezembro)