“É assim, eu já vos disse que não podem estar deste lado. Façam o favor de ir para o átrio!”, ordenou com a autoridade Fátima Martins, a funcionária que nos recebeu à entrada da Escola Secundária D. Filipa de Lencastre, em Lisboa. Não é fácil ajudar a gerir um agrupamento de escolas com pouco menos de dois mil alunos, desde o jardim de infância até ao último ano do secundário. Muito menos em tardes como esta, com várias festas de Natal a acontecerem no átrio e com uma turma dispensada de aulas porque o professor faltou.
À frente de Fátima Martins — que entretanto ficou circundada de outros funcionários que acodem um rapaz que se magoou a jogar à bola — há uma caixa de sugestões. Só tem três papéis, claramente arrancados do “caderno de linhas” e dobrados em quatro, porque havia sido aberta e esvaziada há pouco tempo. “A maior parte dos papelinhos que lemos na semana passada pediam que a dona Cátia e o senhor Edgar fossem aumentados no ordenado, porque eram muito simpáticos“, confessa-nos com ternura a subdiretora da escola, Albertina Borges. Para ela e para a diretora da escola, Laura de Medeiros, é este apreço entre os membros da comunidade escolar que justifica o facto de a Escola Secundária D. Filipa de Lencastre — “o Filipa”, como lhe chama quem anda por cá todos os dias — ter ficado em primeiro lugar no ranking escolas secundárias públicas portuguesas com notas mais altas nos exames nacionais.
Uma escola de afetos
Enquanto atravessamos o átrio da escola, com paredes forradas de quadros vindos do edifício antigo, uma série de alunos mais novos cruzam-se connosco. “Estão aqui porque esta é a melhor escola secundária pública do país”, segredam uns aos outros, enquanto jogam “Water Bottle Flip”. Para Fátima Martins, os miúdos que estudam dentro destas paredes não são muito diferentes dos outros.
O ambiente mostra isso mesmo: há cartazes de campeonatos de League of Legends, casais chateados que fazem as pazes em menos de dez minutos e um grupo de miúdos a jogar futebol junto a um amontoado de folhas de outono. Quando entram para as aulas e o silêncio se instala nos corredores, Fátima Martins diz: “Estamos em paz”. A diferença, explica a direção, faz-se precisamente nesta cumplicidade entre docentes e alunos: “Nós somos uma escola de afetos, feita por pessoas para pessoas”.
Para entender o sucesso desta escola nos resultados do ensino secundário é preciso recuar no tempo. Recuar muito: de acordo com Laura de Medeiros, é o investimento feito nos estudantes desde a pré-escola até ao final do ensino básico (que termina no 9º ano), que determina a caminhada que os estudantes têm feito entre os 10º e 12º anos. O facto de, tanto os alunos como os pais, estarem em contacto com os professores e funcionários que os vão acompanhar durante todo o percurso escolar — quem entra ainda pequeno pode passar aqui pelo menos quinze anos — fomenta um espírito de familiaridade que é palpável: quando professores e alunos se cruzam nos corredores, entre salas de aula, à saída da biblioteca ou à entrada do auditório, cumprimentam-se sempre. “Esta é uma escola que fornece competências para a vida. Aqui não queremos ficar pelas aulas: participamos também no crescimento dos estudantes como indivíduos, como pessoas. Esta proximidade entre nós ajuda a criar um sentimento de pertença. Ouvimo-nos uns aos outros“, explica Laura de Medeiros.
Os “valores humanistas” de que a diretora desta escola fala vão para além da sala de aula: envolvem também os pais. Laura de Medeiros confessa que a Associação de Encarregados da Educação dos alunos do Filipa é bastante ativa e trabalham em conjunto com as pessoas que, na verdade, acompanham tanto quanto eles o crescimento dos filhos: “A direção e a Associação de Pais estão envolvidas em vários projetos em parceria. Claro que há aspetos da educação dos estudantes que só lhes diz respeito a eles, outros que são da nossa exclusiva responsabilidade. Mas a partilha de tarefas acaba por corresponder às expetativas dos pais e aumenta a confiança que eles depositam na escola“, descreve a diretora do agrupamento. E vai mais longe: os mais de 140 docentes para 1.890 alunos também são mais felizes aqui, garante.
Há muitos motivos para isso, considera: embora nem todos façam parte do pessoal efetivo da escola, uma boa parte acompanha os estudantes durante grande parte da sua evolução escolar. Mesmo quando deixam de ter a disciplina que um professor leciona, é possível que o venham a reencontrar no âmbito de um programa de coadjuvação implementado pela escola (já lá vamos), que leva professores de outras disciplinas para salas de aulas dos colegas. De qualquer modo, muitos dos docentes estão nos quadros do agrupamento, garantindo uma estabilidade necessária para a tranquilidade do ensino, explica Laura de Medeiros: “Acima de tudo, estes alunos sabem que nós estamos sempre aqui para eles. Sabem que somos sempre a autoridade, respeitam-nos como professores, mas tenho a certeza que sabem que podem contar connosco”.
A fórmula
Há muito que a Escola Secundária D. Filipa de Lencastre, aberta há mais de oitenta anos, é uma escola de referência em Lisboa. Mas aqui não se trabalha em prol dos rankings, nem mesmo em função dos exames. “Olhamos para os rankings como uma ferramenta de auto-reflexão, mas acreditamos que os resultados têm de ser contextualizados. Há muitas escolas públicas que estão a desenvolver um trabalho fantástico, mas que não estão numa posição tão boa“, diz Laura de Medeiros. Esta está porque, defende a diretora, não vive para as notas: “Somos uma escola para depois de amanhã e construímos dias felizes para o futuro”.
São muitas as atividades em que a escola se envolve, várias vezes em parcerias com empresas ou com as Juntas de Freguesias em redor. Além de incentivar os estudantes a participarem em projetos de voluntariado, a direção abriu um projeto há um ano que coloca os estudantes do secundário em contacto com o mercado de trabalho ainda antes de escolherem definitivamente os seus cursos: é o Job Shadowing. A ideia é que, nas pausas entre períodos, os alunos passem alguns dias como “sombra” de um profissional na área que quiserem experimentar. A Escola Filipa de Lencastre já estabeleceu parcerias com a Caixa Geral de Depósitos, a Faculdade de Medicina, o Hospital de D.Estefânia, o ISCTE, o Instituto Superior Técnico, o Tribunal da Relação de Lisboa, a Universidade Nova, com escritórios de advogados, consultórios médicos, a SIC e outras instituições.
No final desse período, os estudantes devem escrever um relatório e expô-lo aos pais, aos professores, colegas e um representante dessa entidade. É assim que muitos deles descobrem outras atividades que nunca tinham ponderado, o que, na opinião da direção, pode ajudá-los a focarem-se nos estudos no ensino secundário por meio da motivação e do compromisso. E os alunos parecem ter entendido a ideia: em 2015, foram onze os alunos que aderiram ao projeto. Este ano foram mais de cem, alguns ainda do 9º ano.
Grande parte do entusiasmo que a escola quer fomentar nos alunos pelas atividades extra-curriculares começa durante o ensino primário e básico: é nessa altura que os estudantes são convidados a entrar em grupos de robótica, filosofia, música, xadrez, esgrima, informática, ilustração, entre outras atividades artísticas, intelectuais, desportivas e científicas. Entre os 5º e 9º anos, os alunos recebem formação direcionada para a escrita criativa, empreendedorismo, matemática (onde se inscrevem em torneios como as Olimpíadas de Matemática) e património e História.
Aos mais novos, entusiasmam-nos através da competição: entregam a cada estudante um “Passaporte de Leitura” que é carimbado sempre que terminam mais um livro. Com os mais velhos, a estratégia é ainda fomentar a competição saudável, mas através de outro mecanismo: os grupos de nível. Há três – A, B e C – e objetivo é que o aluno vá evoluindo: os mais fracos para níveis melhores; e aqueles que já conquistam bons resultados para níveis de capacidades ainda melhores. Quando estratégias como esta deixam de funcionar, já o “gosto por aprender” e o “entusiasmo pelos projetos escolares” está enraizado na forma como os estudantes vivem a escolaridade, garante a direção.
Outra estratégia utilizada para garantir o sucesso dos estudantes é tornar as aulas interdisciplinares em regime de coadjuvação: um professor de Matemática, por exemplo, pode dar uma aula em parceria com um professor de Físico-Química (na verdade, tem blocos do seu horário reservados para esse tipo de aulas). Assim, os alunos aprendem a cruzar conceitos e conhecimentos apreendidos em aula. Para Laura de Medeiros, muitas vezes o sucesso numa determinada disciplina depende da compreensão de matérias lecionadas noutras cadeiras. Com o regime de coadjuvação, esse sucesso fica mais perto da realidade. E não funciona apenas entre disciplinas do mesmo ciclo: um professor do terceiro ciclo pode reencontrar os seus antigos alunos numa cadeira do secundário, assim como pode assistir a uma aula do 3º ano e introduzir noções úteis aos mais novos.
Algo semelhante acontece entre alunos, numa espécie de apadrinhamento: os alunos mais velhos são convidados a apresentar os seus trabalhos e projetos aos mais novos. Traz vantagem aos estudantes do ensino secundário, porque obriga-os a recordar as matérias e a resumi-las; e traz vantagem aos estudantes da primária e básico, porque comunicam com colegas com maior experiência educativa, além de entrarem em contacto prévio com assuntos mais avançados.
Em suma, a “fórmula” que traz notas altas aos alunos da Escola D. Filipa de Lencastre é “abrir a curiosidade”: “A nossa missão é que os alunos saiam daqui a saber pensar melhor. Por isso é que apostamos tanto no rigor científico e na qualidade do nosso ensino. Traçamos metas a partir das quais os estudantes se tornem autodidatas e saibam agir em conformidade com as circunstâncias”, explica a diretora da escola. E acrescenta: “O segredo é que os alunos tenham sempre pontos de interrogação em mente. Devem querer experimentar para descobrir, argumentar sobre as suas ideias e saber comunicá-las”. É uma questão de autoestima e de entusiasmo pelos projetos, finaliza a subdiretora, Albertina Borges.
Mas resulta? Os alunos falam por si
Sofia, Clara, Bárbara e Tomás entraram na sala da diretora da escola, onde o Observador esperava por eles. Noutras escolas isso poderia ser sinónimo de sarilhos, mas não aqui: às vezes, os professores chamam os alunos só para conversarem com eles. Enquanto esperavam que a nossa entrevista com as diretoras da escola terminassem, conversavam sobre as aulas: “Quando saio da aula daquela professora só me apetece ler poesia”, confessa um dos alunos. A nossa conversa com alguns dos melhores alunos da escola já vai a meio quando um professor chega com mais um rapaz: “Olhem, consegui mais um. É o Filipe ‘Atrasado’ Moreno”. Sentados numa mesa redonda, os cinco contam-nos o que há de melhor nesta escola, o que falta fazer e o que pode acontecer a partir daqui. À medida que os minutos passam, vão descontraindo nas cadeiras e nas respostas. Isto foi o que nos contaram.
Sofia Fiolhais, 17 anos, Ciências Socioeconómicas
“O meu nome é Sofia Fiolhais, tenho 17 anos e estou no curso de Ciências Socioeconómicas. Não sei bem o que quero ser, mas quero entrar em Gestão na universidade. Fiz parte da lista que não ganhou as eleições para a Associação de Estudantes. Era a lista DAB, sabe… Como aquele movimento de dança. O nome foi sugerido pelo presidente da lista e eu só lhe dei um sentido plausível no slogan: Desenvolvemos a tua escola, Ambicionamos mais longe, Basta votar. Não ganhámos, mas as coisas aqui funcionam de forma diferente. A Associação de Estudantes tem de ter dois membros da lista contrária que defendem as nossas ideias que são, além das festas e jantares típicos, debates didáticos e reuniões entre os alunos do secundário e os do 3º ciclo, para os mais novos que estão mais indecisos sobre o que vão seguir a seguir. Ando nesta escola desde sempre. Sempre teve boa fama e tem a vantagem de nunca mudarmos de escola. Não acho que essa mudança seja prejudicial para o sucesso de um aluno, mas ajuda o facto de conhecermos os professores todos como em família. Isso e a exigência nos testes são as coisas que diferem esta escola das outras, porque vamos muito bem preparados para os exames. Nem tudo é perfeito: todos os professores são bons, mas alguns precisavam de nos cativar mais para as disciplinas. A filosofia da escola funciona bem: temos objetivos de vida, metas a atingir. Um dia, é isto que quero para os meus filhos. Como costumo estudar? Fazer resumos nas disciplinas teóricas e muitos exercícios nas práticas, como Matemática”.
Clara Lavrador, 17 anos, Ciências e Tecnologia
“Sou a Clara Lavrador, tenho 17 anos e ando em Ciências e Tecnologia. Quero ser médica oncológica. Estudei aqui durante algum tempo, depois mudei-me para os Estados Unidos e voltei a Portugal. Nota-se uma grande diferença. Aqui a escola ainda é vista como o sítio onde as pessoas têm aulas e pronto. Lá há um espírito de equipa enorme, um sentimento de pertença. Aqui a cultura é apenas a de trabalhar para a nota. Não me causa estranheza que esta escola esteja tão bem classificada. É bastante exigente, prepara-nos para as dificuldades que vamos enfrentar lá fora. Por enquanto, o facto de ser um agrupamento ajuda a tornar o ambiente mais familiar, por isso sentimo-nos mais confortáveis e seguros. Ainda assim, nunca perdemos ritmo de trabalho, também porque a escola nos inclui em várias atividades e projetos. E acho que o segredo para o sucesso da escola também está no facto de os nossos pais serem pessoas com uma educação maior do que a que se assistia até aqui. São pessoas instruídas, participativas e mais atentas ao nosso percurso. Uma coisa que faço muito para estudar é dar aulas. Tenho um quadro e depois de estudar a matéria, com resumos, escrevo as coisas no quadro e explico-as em voz alta”.
Tomás Sanches, 17 anos, Ciências e Tecnologias
“Chamo-me Tomás Sanches, tenho 17 anos e ando em Ciências e Tecnologias. Quando entrei no curso estava indeciso entre ser médico ou engenheiro, mas aderi ao programa de Job Shadowing e decidi que quero ser engenheiro. Ainda não sei do quê. Só entrei na escola no 10º ano e concordo que está bem classificada porque é bastante exigente e preparam-nos muito para o futuro, embora também ache que nem sempre estamos motivados para as aulas. Mesmo assim, obriga-nos mesmo a sermos focados e empenhados na escola: às vezes temos páginas e páginas de exercícios para fazer como TPC. Tipo quarenta! Se não tivermos o hábito natural de estudar em casa, pelo menos assim a escola obriga-nos a fazê-lo. É um dos meus métodos de estudo, além dos resumos”.
Bárbara Candeias, 17 anos, Humanidades
“Chamo-me Bárbara Candeias, tenho 17 anos e estou em Humanidades. Quero estudar Línguas e Literatura quando chegar à universidade. Só entrei nesta escola no 6º ano. O meu irmão estudava cá e já sabíamos lá em casa que era uma escola exigente e em que os pais podiam confiar. Essa é a mais-valia desta escola. O defeito está na nossa desmotivação. Acho que acontece em várias escolas de Portugal: os cursos que não são Ciências podem ser vistos com menos prestígio e há um certo desinvestimento nas outras áreas, o que acaba por desmotivar os alunos. Os estudantes de Humanidades são vistos como “aqueles que não gostam ou não se safaram a Matemática”. Isso e a falta de variedade: no 12º ano temos de escolher algumas disciplinas. Houve quem escolhesse francês – porque era o melhor para o que ia seguir na universidade – mas que teve de ficar noutras cadeiras, como Matemática Aplicada às Ciências Sociais, porque não havia professores. Mesmo assim, temos a mais valia de termos muitas atividades dentro da escola, podemos envolver-nos em muitos projetos. Por exemplo, eu estive no jornal Público uns dias no Job Shadowing e percebi que não quero ser jornalista. Para estudar, na minha área, é só mesmo marrar com resumos”.
Filipe Moreno, 17 anos, Ciências Socioeconómicas
“Sou o Filipe Moreno, tenho 17 anos e ando em Socioeconómicas. Quero seguir Direito na universidade, mas a profissão que quero ainda não sei. Eu não concordo que tenham de ser os professores a motivar-nos para as disciplinas. Os professores são ótimos, nós é que temos de estar cientes que precisamos daquelas disciplinas para atingirmos os nossos objetivos. Concordo com a Bárbara quando diz que os alunos que não são de Ciências são um pouco renegados: há uma seletividade, mas que não é causada por esta escola em particular, mas sim pela sociedade. O que noto no meu curso é que a exigência podia ser maior: as pessoas tendem a ser mais insistentes com a Matemática A em Ciências, porque sabem que eles vão precisar dessa nota para entrar nos cursos que querem. Depois desinvestem na Matemática para Socioeconómicas, como se nos interessasse menos, o que não é verdade.
Gosto de estudar aqui porque as pessoas se conhecem todas, o ambiente é agradável. Só não gosto do incentivo ao estudo através do TPC, porque acho que cada um tem de ser responsável o suficiente para perceber que tem de estudar em casa. Há pouco tempo descobri um método de estudo que um amigo meu me ensinou: eu faço resumos, depois leio em voz alta e gravo. A seguir vou ouvindo como quem ouve música. E olhem que resulta. Da última vez, pelo menos, resultou”.
Quando saímos da sala da diretora, a noite vai caindo lá fora e a chuva também. Há uma confusão enorme no átrio, todo enfeitado com objetos de Natal construídos pelos alunos. À frente do auditório adensa-se uma fila com mais e crianças de todas as idades. Vão assistir a uma festa natalícia do 2º Ciclo. Agradecemos aos mais crescidos, com quem acabamos de conversar: “Desculpem a demora, não queríamos atrapalhar a festa no auditório”. “Eu também não ia”, confessa Sofia: “Ia era à pista de gelo no Parque Eduardo VII”. É que, concordam todos, para ser um aluno exemplar não é preciso desistir da diversão.