Os melhores
“A guerra não tem rosto de mulher” e “Vozes de Chernobyl”, Svetlana Alexievich (Elsinore)
Há quem se abespinhe por a Academia Sueca tender a atribuir o Prémio Nobel da Literatura a ilustres desconhecidos, mas o mais admirável poder que o Nobel tem é, precisamente, o de revelar ao mundo génios que medram na obscuridade – foi por a Academia não se reger pelo dúbio critério da popularidade que Wisława Szymborska e Herta Müller se tornaram conhecidas fora de um círculo restrito de entusiastas (já em 2016, a Academia fez o contrário: cedeu ao gosto dominante e ao lugar comum e galardoou um cantor pop de fama planetária cujo último disco relevante foi editado há 50 anos).
Não fosse a atribuição do Nobel da Literatura de 2015 à bielorussa Svetlana Alexievich e é provável que nunca fossem traduzidas para português estas duas obras magnas, situadas na fronteira entre a literatura e a reportagem e em que o deliberado apagamento da voz autoral e a renúncia a floreados “literários” têm o poder de tornar mais intensas e pungentes as dramáticas experiências de vida relatadas pelos entrevistados de Alexievich. Poderão ler-se relatórios técnicos detalhados e rigorosos sobre o desastre nuclear de Chernobyl e livros sobre as operações militares na Frente Leste durante a II Guerra Mundial, mas nada disso nos proporcionará uma visão tão nítida do que acontece no cerne do ser humano quando é apanhado pelo vórtice da catástrofe como estes livros de Alexievich.
“Robôs: A ameaça de um futuro sem emprego”, Martin Ford (Bertrand)
Quando se contempla o mundo em 2016, não faltam motivos de inquietação – o terrorismo islâmico, Trump na Casa Branca, Putin a mostrar músculo no Kremlin, a possibilidade de ter Marine Le Pen no Eliseu, a ascensão da extrema-direita em quase todos os países da Europa, o titubear do projecto europeu, as alterações climáticas – mas estes problemas, que costumam dominar as manchetes dos media e as preocupações dos cidadãos, tornam-se secundários perante a ameaça que representa a inexorável automação da indústria e dos serviços e a consequente diminuição dos postos de trabalho. O progresso tecnológico permite extraordinários ganhos de produtividade mas, ao mesmo tempo, cria sociedades disfuncionais e em que a distribuição da riqueza é cada vez mais desigual, com o capital a prevalecer sobre o trabalho. Como será possível manter a paz social num mundo em que os trabalhadores se tornaram supérfluos, porque há um robot ou uma app que faz o seu trabalho?
“A arte de chorar em coro”, Erling Jepsen (Cavalo de Ferro)
A vida pequeno-burguesa, beata, obtusa e mesquinha numa vilória dinamarquesa dos anos 60 é dissecada implacavelmente pelo olhar cândido de um miúdo de 11 anos que conclui, à custa das suas experiências, que não que há temer ser punido pelos nossos erros e pulhices, pois “não há árbitro para apitar”. O dinamarquês Erling Jepsen (n. 1956) é um mestre do sarcasmo e do humor negro.
“Heinrich Himmler”, Peter Longerich (Dom Quixote)
A vida do mais poderoso e temido homem do III Reich a seguir a Hitler é dissecada com o rigor e frieza de um anatomopatologista. O relatório da autópsia tem 900 páginas e entrelaça a biografia política e a vida privada de Himmler para mostrar como uma criatura sem qualidades assinaláveis, várias taras e um apreciável colecção de crenças idiotas chegou a Reichsführer SS e foi o principal obreiro do Holocausto.
O pior
“As Altas Montanhas de Portugal”, Yann Martel (Presença)
Uma penosa viagem de automóvel, em 1904 – ainda sem IPs nem ICs – de Lisboa às Altas Montanhas de Portugal (supostamente o nome dado por cá à região de Trás-Os-Montes) em busca de um crucifixo; a autópsia, em 1938, de um homem que a mulher trouxe numa mala até à morgue do Hospital de Bragança; a paixão assolapada, na década de 1980, de um senador canadiano por um chimpanzé, que termina numa trágica lua-de-mel em Trás-Os-Montes, em que também faz a sua aparição o mítico “rinoceronte ibérico”. É o realismo mágico transferido da selva sul-americana para o planalto transmontano e em versão mentecapta, por um escritor cumulado de prémios literários e que vendeu 12 milhões de exemplares de A vida de Pi.
Outros bons livros surgidos em 2016: Crowley, Roger: Conquistadores (Presença), Bethencourt, Francisco: Racismos: Das Cruzadas ao século XX (Temas & Debates), Davies, Norman: Reinos desaparecidos (Edições 70), Goncharov, Ivan: Oblomov (Tinta-da-China), Kershaw, Ian: À beira do abismo: 1919-1949 (D. Quixote), Snyder, Timothy: Terra negra (Bertrand), Thompson, Willie: Trabalho, sexo e poder (Temas & Debates), Wulf, Andrea: A invenção da natureza: Alexander von Humboldt (Temas & Debates), Heimann, Jim, Steven Heller & Jim Donnelly (eds.): Automobile design graphics: A visual history from the Golden Age to the Gas Crisis 1900-1973 (Taschen)
Reedições: Andric, Ivo: A ponte sobre o Drina (Cavalo de Ferro), Capote, Truman: A sangue-frio (D. Quixote), Fonseca, Rubem: O selvagem da ópera (Sextante), Machado de Assis: Memórias póstumas de Brás Cubas (Guerra & Paz)
[as escolhas de José Carlos Fernandes:]