“O suave milagre”
Eça de Queiroz
Não podia faltar. É uma espécie de Christmas Carol português, de que toda a gente já ouviu falar ou conhece, embora não seja tão lido como o famoso conto de Dickens, nem tenha as milhentas adaptações de toda a espécie que fazem da história de Mr. Scrooge um ‘clássico universal’. É o primeiro que nos ocorre quando se fala de ‘contos de Natal’ em português. Tem a particularidade de que nele intervém Nosso Senhor Jesus Cristo, o que muitas vezes não é o caso na literatura natalícia – vagamente edificante mas sem referência direta à Natividade, no modo de época de genérica boa vontade em que se prodigam os inócuos ‘Season’s Greetings’. É a síndrome ‘o Natal é sempre que o homem quiser’. ‘O suave milagre’, exemplar de um certo Eça tardio (o das histórias de santos publicadas postumamente nas ‘Últimas páginas’), é ambientado na Palestina do tempo de Jesus e conta a história de uma infeliz criança, pobre e aleijada, que põe toda a sua esperança em ver o Messias. A mãe explica-lhe as impossibilidades de um tal desejo. O filho teima.
O conto acaba assim: ‘De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou: – Mãe, eu queria ver Jesus … E, logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: – Aqui estou.’ Portugal, como Vasco Graça Moura mostrou na respectiva antologia, tem uma literatura especialmente rica nesta matéria. Constam dessa seleção três dezenas de ‘histórias de Natal de 23 nomes cimeiros da literatura portuguesa’. Além deste inevitável ‘Suave Milagre’, estão lá contos de Jorge de Sena, Miguel Torga, Raul Brandão, José Régio, José Rodrigues Miguéis, Manuel da Fonseca, José Eduardo Agualusa, José Andrade Ferreira, Ramalho Ortigão, João da Câmara, Abel Botelho, Fialho de Almeida, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Vitorino Nemésio, Domingos Monteiro, Maria Judite de Carvalho, Natália Nunes, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues, Alexandre O’Neill e Altino do Tojal. Chega?
“O presente dos Magos” (“The Gift of the Magi”)
O. Henry
É um dos contos mais festejados do autor. Com o título acima, tem duas ou três publicações em Portugal que eu saiba, em duas antologias de vários autores e provavelmente – não verifiquei – numa coleção de ‘Contos de Natal’ do escritor americano que escreveu sob este nome literário e na vida civil se chamou William Sydney Porter (1862-1910). Muitas das suas centenas de histórias foram adaptadas para cinema ou televisão, incluindo esta. A vida dele dava, aliás, um filme, mas isso é outra história. Um dos primeiros tradutores de O. Henry para português foi Fernando Pessoa, que verteu para a nossa língua três dos seus contos e publicou-os na Athena, Revista de Arte: dois no número 3 (‘A teoria e o cão’ e o sempre actual ‘Os caminhos que tomamos’ – como numa balada americana desses tempos, referida noutro contexto por Nelson Algren, ‘uns roubam com a pistola de seis tiros, outros com a caneta’); um (‘A decisão de Geórgia’) no número 5. O. Henry tem uma lendária reputação como contista.
Nos Estados Unidos, existe desde 1918 um prestigioso prémio literário para short stories que tem o seu nome: o O.Henry Award em cujo quase centenário rol de premiados figuram, por exemplo, Alice Munro, recente Prémio Nobel da Literatura, Raymond Carver ou John Updike. Embora não seja propriamente o caso dos três escolhidos por Pessoa, grande parte dos contos de O. Henry são contos ‘de Natal’, em que o bom-coração é premiado ou, pelo menos, consoladoramente exaltado. (Estou a pensar, por exemplo, entre muitos outros, no conto Jimmy Valentine em que um arrombador de cofres aceita denunciar-se para salvar uma criancinha fechada por inadvertência na caixa-forte de um banco.) ‘O presente dos Magos’ é uma tocante história de amor conjugal, tecnicamente perfeita, contada com o humor que caracteriza o autor e resgata sempre o seu irresistível sentimentalismo. O. Henry publicou a certa altura uma revista humorística chamada – imaginem – The Rolling Stone.
“A Christmas Carol”, de Charles Dickens
É também obrigatório. São muitas as traduções em português de Dickens. Sob os títulos ‘Conto de Natal’ ou ‘O Natal do avarento’ e alguns outros (incluindo, salvo erro, um literal ‘Cântico de Natal’) este seu conto ou ‘novela’ foi publicado inúmeras vezes entre nós. É sobejamente conhecido, quanto mais não seja pelas múltiplas adaptações dramáticas de toda a espécie que tem merecido, em especial nas várias versões cinematográficas, uma das mais recentes com Bill Murray no papel principal. O protagonista, o avarento Mr. Scrooge, é uma daquelas criações de Dickens que está para sempre na galeria dos personagens de ficção mais reais do que a própria vida. A Walt Disney contribuiu para imortalizar o apelido ao dá-lo ao Tio Patinhas, Uncle Scrooge na versão original.
Dada a público pela primeira vez em vésperas do Natal de 1843 ‘a história’ – como toda a gente já tem obrigação de saber – ‘fala-nos da transformação ideológica, ética e emocional do azedo e somítico Ebenezer Scrooge depois da visita sobrenatural de Jacob Marley e dos Espíritos dos Natais Passados, Presente e Ainda Por Vir. (…) Com o seu conto – diz o mesmo e sentencioso resumo de que me estou a valer – Dickens esperava ‘ilustrar como as pessoas interesseiras e insensíveis podem ser convertidas a membros da sociedade caridosos, compassivos e socialmente responsáveis.’ Outro grande escritor de língua inglesa, o Samuel Clemens que conhecemos como Mark Twain, também escreveu à filha doente uma muito citada ‘Carta de Santa Claus’. Santa Claus, que mora na Lapónia, a que chamamos Pai Natal, com o trenó puxado a renas e os seus ajudantes, é uma tradição muito enraizada e confusa, em cujos meandros não vamos entrar. Está associado a São Nicolau, um santo que se festeja a 6 de Dezembro em Itália e nessa data traz os presentes. Nós contávamos mais com o Menino Jesus. Os espanhóis, numa tradição que em termos literais e prosaicos faz mais sentido que as outras, marcam a vinda dos presentes para 6 de Janeiro e quem os traz são os Reis Magos.
“The Adventure of the Blue Carbuncle”
Arthur Conan Doyle
Esta aventura de Sherlock Holmes é citada em certas listas de contos de Natal mas a relação que tem com a celebração do Nascimento de Jesus é um tanto marginal: passa-se na época de Natal e centra-se no mistério de uma pedra preciosa descoberta dentro de um peru natalício, deixado cair no que parecia uma banal arruaça. O conto começa da maneira a que A. Conan Doyle nos habituou: ’Eu passara por casa do meu amigo Sherlock Holmes na segunda manhã a seguir ao Dia de Natal, com a intenção de lhe apresentar os cumprimentos próprios da época. Estava estendido no sofa, de roupão escarlate, com uma colecção de cachimbos ao alcance da mão …’ Há também no decurso da história, temos de reconhecer, juramentos sobre a Bíblia e, por fim, o perdão natalício do criminoso, por compaixão do astutíssimo investigador: ‘Assim como assim, Watson – disse Holmes, alçando a mão até ao seu cachimbo de barro – não estou contratado pela polícia para suprir as suas deficiências.
Se Horner estivesse em perigo era outra coisa mas este fulano não vai testemunhar contra ele e a acusação cai pela base. Suponho que estou a condescender com um crime mas talvez esteja a salvar uma alma. Este tipo não torna ao mau caminho; apanhou um grande susto. Mandá-lo agora para a cadeia é fazer dele um criminoso para o resto da sua vida. Além disso, estamos na época de perdoar.’ A. Conan Doyle, formado em medicina, era ao mesmo tempo um fervoroso crente nos poderes da Razão e um teosofista, acreditava em fantasmas e em contactos com o outro mundo. Nascido e criado numa família católica, abandonou depois a sua Fé – era, em resumo, um digno exemplar daquele mundo que o saudoso Philippe Murray descreveu em ‘O século XIX através dos tempos’. Aplica-se-lhe muito bem a famosa sentença de G. K. Chesterton: ‘Quem deixa de acreditar em Deus não passa a acreditar em nada, passa a acreditar em tudo’.
“Conte de Nöel”
Guy de Maupassant
O ‘Conto de Natal’ de Maupassant também não é típico. Maupassant é o ‘escritor dos baixos instintos’. Os bons sentimentos não abundam na obra deste escritor francês, emérito contador de histórias e criador de memoráveis ‘climas’ e imagens. E quando lá estão não costumam ser recompensados. Um dos seus mais famosos contos, Boule de Suif, que o lançou, não é excepção, ao contrário da versão revista e emendada por Dudley Nichols para o western de John Ford que esse conto inspirou (por intermédio da prévia inspiração de um conto de Ernest Haycox). Quem tenha visto o clássico ‘A cavalgada heróica’ (Stagecoach, 1939) lembra-se com certeza do personagem de John Wayne (o seu primeiro grande papel) e do sulista interpretado por John Carradine, com a sua generosa nobreza. Bertolt Brecht e Chico Buarque de Holanda foram mais fiéis ao espírito do original quando piratearam esse conto na ‘Ópera dos Três vinténs’ e na ‘Ópera do Malandro’ (’Joga a pedra na Géni …’).
O negrume de ‘Bola de Sebo’ é moral e social. Mas Maupassant cultivou abundantemente na sua obra outro tipo de escuridão, sobrenatural ou paranormal, como no L’Auberge que é apontado como uma das inspirações de The Shining. São inquestionáveis as parecenças entre o conto francês e a história contada por Stephen King e filmada por Stanley Kubrick. Isso está bem patente nas coleções de contos de Maupassant editadas em Portugal, de que me permito destacar, a título de exemplo e entre muitas outras, os ‘Contos do Insólito’ publicados pela Guimarães. O seu ‘Conto de Natal’ tem ressaibos dessa veia. É a história da misteriosa possessão (demoníaca?) de uma mulher do campo que só a Missa de Natal apazigua. O ‘milagre’ é reconhecido, à contre-coeur, pelo médico da aldeia, à boa maneira racionalista: ‘O doutor Bonenfant calou-se e depois acrescentou com uma voz contrariada: Não pude recusar-me a atestá-lo por escrito.’ Bonenfant, Bom menino?
“Jesus ladrão”
André Brun
Dez contos em papel foi o título que o grande humorista português deu a uma coleção de ficcções breves. Era nos tempos em que um conto de reis queria dizer mil escudos. Embora sejam na sua maioria ‘contos sentimentais‘ – na classificação do próprio autor – não resistiu ao trocadilho. Se é conhecido hoje em dia, é principalmente por peças de teatro como A maluquinha de Arroios ou A vizinha do lado. Sempre ‘auto-depreciativo’, prodigamente talentoso, André Brun nunca é maldoso ou cruel. E não se envergonha dos seus arrebatos de boa vontade ou de ternura. No amável prefácio que escreveu para a colectânea intitulada Folhinha de qualquer ano, escreveu: ‘Esta minha folhinha disse-me, sem pretenção: – Sou um livro português, alfacinha mesmo quase sempre. O meu estilo não será de selecta mas é o teu, papá. Não imitei ninguém. Tenho páginas alegres, páginas tristes, como compete a uma obra de humorista, medíocre embora, mas humorista no verdadeiro sentido da palavra. (…) Sou um livro decente que as filhas podem deixar ler às suas mães.’
É na Folhinha que se inclui o ‘conto para a noite de Natal’ Jesus Ladrão. É quase a antítese desanimada de O suave milagre. Está lá o Brun bom rapaz mas irreverente e cético. O Menino Jesus condói-se de uma criança miserável e, esgotados os brinquedos que tinha para distribuir, entra pé-ante-pé na chaminé de uma casa rica e rouba um par de sapatinhos que deixa nos pés do gaiato. Este fica a dormir na rua ‘vestido de miséria e calçado de verniz’. Não acaba aqui. ‘A mãe do garoto era empreiteira de mendicidade. Tinha quatro filhos, semeava um em cada esquina, adestrava-lhes a mão e o choro no geito de pedir… Ao ver aquele dormindo em vez de fazer pela vida, com dois bofetões o pôz de pé … Os sapatos foram confiscados e logo vendidos numa casa de penhores. O mendigo continuou descalço e resultou inútil o roubo de Jesus, como inúteis foram a sua Vida e Paixão para melhorar os homens e o mundo.’